
Lembras-te do nosso primeiro fim-de-semana em Évora? Tínhamos 19 anos, o meu pai emprestou-me o seu Lancia Delta, foi no fim do segundo semestre. Eu tive boas notas e tu ainda melhores. Eras a melhor do curso e a melhor em tudo. Mas não foi por isso que decidi que irias ser a minha mulher. Foi porque num dos primeiros dias de aulas, puseste-te ao meu lado no bar, olhaste-me de alto abaixo e perguntaste:
- Você é de Economia ou de Gestão?
Fiquei pregado ao chão. Uma brasa como tu a meter conversa com um baixote como eu. Na verdade não sei se o que me perturbou mais foi a pergunta ou os teus ombros parcialmente tapados por um casaquinho de malha vagamente antiquado, mas que em ti ficava a matar. Só meses mais tarde percebi essa mania nas mulheres da tua família de usarem casaco de malha, no Verão e no Inverno, faça chuva ou faça sol. A tua mãe, a tua avó loira e imponente e as tuas três irmãs mais novas, Margarida, a sonhadora, Inês, a analítica e Leonor, a aventureira andam sempre com um vestido ou na mala. Todas tão parecidas, declinações próximas da mesma piscina genética. Quis a sorte que fossem todas bonitas e inteligentes, com pelo na venta e o dom de dizer sempre a última palavra. Como só tenho um irmão e nunca me dei bem com ele, descobri o conforto imenso das grandes irmandades assim que comecei a namorar contigo. Tive sorte. Além de uma mulher sensacional, herdei três irmãs mais novas, e depois ganhei duas filhas. Se fosse um déspota, poderia sentir-me um sultão, mas como tenho bom feitio, sinto-me só um tipo a quem a vida sorriu.
Nunca foste fácil, percebi logo com aquela pergunta que trazia na ponta da seta o irresistível sabor do veneno feminino. Respondi-te a verdade, Gestão. Suspiraste de alívio e disseste:
- Ainda bem, porque os Economistas são tipos que têm a mania que sabem muito, mas é tudo teoria, os gestores são os que metem a mão na massa. Em todos os sentidos – concluíste, enquanto davas mais o golinho na Sumol de ananás por uma palhinha com riscas amarelas.
Sem saber o que te responder, deixei cair um sorriso que me pareceu bastante imbecil e virei-te as costas. Fiquei perturbado com o movimento da tua boca, o lábio superior parecia ter uma textura vagamente diferente do inferior, ou talvez fosse apenas mais rosado. E os olhos, meu Deus, verdes e inquisidores, sempre a perguntar coisas que a boca não pronunciava. Nunca percebi que se estavas sempre à espera que te levasse no meu cavalo branco, ou que caísse do mesmo a teus pés para troçares de mim, como fazias com todos os palermas do curso que tentavam meter-se contigo.
- Gosto mais de intimidar do que de agradar – explicaste-me a primeira vez que fomos beber café. Tinhas andado à pancada no secundário, no tempo do MRPP e da UDP, eras tesa e estavas habituada a dizer tudo o que pensavas. Os anos 80 anunciavam a tão desejada estabilidade, a CEE, as autoestradas, os cursos da moda nas universidades para mentes promissoras, e nós na crista da onda do Portugal moderno e democrático.
Sempre me deste muito trabalho. Para te conquistar, demorei o ano letivo inteiro. Só depois dos exames do segundo semestre, nos quais voltaste a ser a melhor da turma, consegui finalmente que me aceitasses. Fiz o pedido de namoro oficial, durante um jantar no Gambrinus, onde vamos todos os anos festejar o nosso aniversário de namoro ou de casamento, tanto faz. Fazes questão de festejar sempre s duas datas, como tu tanto gostas de dizer, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.
Passaram mais de 30 anos, as miúdas cresceram, a Luísa encontrou um tipo sensacional e casou, a Ritinha ainda não, vá- se lá saber porquê. Outro dia chegou a casa em prantos, fechou-se comigo na cozinha e disse:
- A mãe nem sabe a sorte que tem em se ter apaixonado pelo pai. Eu ando há 25 anos à procura de um namorado igual a si, mas só me aparecem palermas, parece que os namorados foram descontinuados – disse-me, a fungar, – mas não conte nada à mãe, ela vai dizer que a culpa é minha porque sou eu quem os escolhe mal.
Abracei-a e lembrei-me de ti, com 19 anos, a passear comigo em Évora, com o olhar posto nas estrelas a dizer-me:
- Vou apaixonar-me por ti porque és o melhor tipo que já conheci.
E fomos felizes para sempre. Quem me dera quer a Ritinha tivesse sorte. Os tempos são outros, mas pode ser que os ventos mudem. Pode ser que a rapaziada aprenda outra vez a namorar. Afinal não existe nada melhor do que ter uma namorada e uma mulher na mesma pessoa. Assim dormes com quem te deitas. Não há maior paz, nem maior conforto.