
Dia de trânsito infernal na minha querida Lisboa. Os turistas invadem a cidade durante todo o ano, vejo-os de cabeça erguida e olhar expetante e sonhador, com aquele otimismo irritante de quem anda a colecionar descobertas. Lisboa está linda, moderna, apurada. O planeta descobriu-a e anda meio mundo apaixonado por ela. E no entanto, continua confusa, cansada, desarrumada. Ou então sou eu que me sinto assim e espelho na cidade o que me vai na alma.
Desde que foste para Luanda, a minha vida tem sido pouco mais do que isto: levanto-me sempre tarde demais porque durmo mal, chego quase no limite da hora ao gabinete, o Dr. Luís franze o sobrolho e só saio quando tenho a certeza que consegui deixar tudo despachado para o dia seguinte. Passo pelo hospital para ver o meu pai, dou-lhe de jantar e volto para casa no meu DS novinho em folha, lindo, branco gelo de capota preta, o único luxo a que me permiti nos últimos anos. Nos meses do IVA o gabinete fica um caos: clientes desorganizados, prazos das finanças que não perdoam e eu a fazer de babysitter a empresários distraídos e a meninas finas que acham que abrir uma loja de roupas para criança e ter uma empresa com contabilidade organizada é a mesma coisa, e não é. Tal como não é a mesma coisa estares ligado a mim, envolvido e apaixonado, como já estiveste e, de um dia para o outro, decidires que vais viver para Luanda.
Não se pode fazer de uma ausência permanente uma presença projetada. Nos primeiros meses dei o meu melhor: falávamos todos os dias e gastei parte das economias para ir ter contigo. Queria matar saudades e conhecer a cidade, mas o lixo nas ruas e a pobreza nas caras dos miúdos deram cabo de mim. Lisboa é despenteada mas não é miserável e aqui ninguém anda de guarda-costas, nem mesmo o nosso querido Presidente que, quando lhe dá na gana, vai à Praia da Rata em Cascais dar um mergulho. Não me senti bem aí por isso não contes com mais visitas, quero guardar o que vou poupando para ir de férias com a Ritinha que não ganha nada mal na Assembleia da República a secretariar um grupo parlamentar. Prefiro qualquer ilha do Caribe, ou até mesmo um paraíso africano, mas nessa terra não me apanham nunca mais.
À noite ligas-me do Skype e do Facetime, mas cada vez temos menos palavras para dar um ao outro. Sem ti a minha vida esvaziou-se, sinto-me só e descorçoada, que é uma palavra que a mãe da Ritinha me ensinou quando andávamos no Liceu e passávamos a vida em casa uma da outra. A mãe da Ritinha tinha uma saúde de ferro até cair para o lado com um aneurisma, não larguei a minha melhor amiga durante meses, quando dei por mim já vivia lá em casa.
Até hoje nada mudou. Quando namorava contigo, ficava muitas noites em tua casa mas nunca me convidaste para ir viver contigo nem me deste as chaves. A Ritinha não se queixava de a deixar para trás, amiga não empata amiga, mas depois de teres ido para Luanda, acabou por me confessar que sentiu algum alívio com a tua partida; tinha a sua irmã adotada mais tempo para ela e no fundo achava que não eras o tipo certo para mim. E agora que o tempo te vai apagando do meus corpo e do meu coração, começo a dar-lhe razão. Eu não queria para a vida um tipo que se esquece sempre da data em que começámos a namorar, que quando era casado metia os cornos à mulher com colegas de trabalho e que nunca me deu um presente, nem mesmo um chocolate quando me sentia triste.
É claro que estes não são os teus maiores defeitos, a minha mãe ensinou-me a calar o pior, mas tinhas algumas falhas de caráter que me deixavam sem ponta de sangue. Aprendi a ignorá-las, o que não é o mesmo que esquece-las, e quando vi aquelas gaivotas a sobrevoar os carros na estreita rua de São Bento deu-me para pensar que estavam ali a mais, tal como tu estás a mais na minha vida.
Nunca foste um bom namorado, o sexo era bom mas nem só de cama vive uma mulher. Falta-te espaço no coração para amar alguém a sério, tal como faltava espaço aquelas três gaivotas que subiam e desciam em voo a rua com o desespero de animais engaiolados.
Espero que tenham encontrado o caminho da liberdade tal como já encontrei o meu. Hoje mesmo pelo Skype vou terminar o que já está morto e confiar na minha boa sorte. Tenho quase a certeza que a vida me vai trazer um bom rapaz, daqueles que nunca se vai esquecer de uma data importante nem de me oferecer chocolates quando sentir que estou triste.