'
FLASH!
Verão 2025
Compre aqui em Epaper
Margarida Rebelo Pinto
Margarida Rebelo Pinto Pessoas Como Nós

Notícia

Ambição no amor

Eu de férias com os miúdos em Vila Nova a aturar as bebedeiras do teu pai e tu no bem bom, a passear com a loira no Malecón, a beber Cubas Livres e a dançar salsa como se não tivesses outra vida.
31 de março de 2017 às 00:10
Havana
Havana

- Nunca mais falei com ela, nem fiz planos para voltar a Havana, se é isso que queres saber.

O casal estava sentado mesmo na mesa do lado, numa dessas esplanadas de Lisboa que se enchem de turistas de abril a setembro. Ele devia ter 50 anos, mais coisa menos coisa, ela parecia mais velha, mas talvez nem fosse. Podia ver-se nas feições que já fora bonita, mas o descuido da pele, o cabelo com laivos de cinzento na raíz, os dentes ligeiramente tortos e vagamente amarelados envelheciam-na. Pareceu-me uma mulher vencida pela vida, pelas circunstâncias, quem sabe pela ausência de sorte, como é afinal tão comum ao comum dos mortais. Não que ele fosse uma estampa, longe disso. Mesmo sentado, dava para perceber que não seria um homem alto nem atlético. Estava vestido como um rapazola de vinte e pouco anos. Ela de túnica azul-bebé, jeans ruços, sabrinas baratas e fio de cabedal ao pescoço do qual pendiam três bonecos de prata, representando duas meninas e um rapazinho.

Ajeitei a cadeira um pouco mais na direção da conversa, pois é sabido que na minha família a surdez atinge as mulheres desde cedo. Fingia que lia um romance histórico sobre Constança, a mulher traída de D. Pedro, o da Inês de Castro, que Afonso IV mandou matar. O que se iniciara como uma atividade aplicada era agora um disfarce de circunstância, porque a minha curiosidade ardia como uma tocha no peito. Queria saber tudo e não podia perguntar nada.

- Ainda pensas nela, não é? – inquiriu a mulher, com um esgar que misturava mágoa com raiva.

Ele abanou a cabeça devagar, num gesto derrotado de consternação.

- Não dizes nada? – Insistiu a mulher com os três filhos pendurados ao pescoço.

- Não tenho nada para dizer. Tens razão, como sempre.

E depois, ao contrário de tudo o que eu esperava, debruçou-se sobre a mesa e agarrou-lhe ambas as mãos, com ternura.

- Tu sabes que eu não escolhi isto. Sempre fiz tudo o que esteve ao meu alcance por ti e pelos pequenos.

Tentei imaginar os pequenos, já espigados, dois adolescentes daqueles que se embebedam nos bares de Santos e uma ainda pequena, em casa, já com dez anos. A expressão "pequenos" soou-me antiquada, o que acentuou ainda mais o véu de ternura que o homem lançava em torno da sua legítima.

- Sim, sim, quando foste de férias com aquela loira mais magra que um cão doente para Cuba três verões seguidos, tudo nas minhas barbas, eu de férias com os miúdos em Vila Nova a aturar as bebedeiras do teu pai e tu no bem bom, a passear com a loira no Malecón, a beber Cubas Livres e a dançar salsa como se não tivesses outra vida, de facto fizeste sempre tudo para nos proteger, exceto ser-me fiel, não foi Manuel?

Tive de me controlar para não entrar na conversa. Queria saber há quanto tempo tinha sido aquilo, como é que ela descobrira as férias adúlteras do marido, mas talvez nem fosse importante. Há feridas que nunca se fecham, a traição é uma delas.

- Tu sabes que estas coisas acontecem, és a mãe dos meus filhos, mas fui apanhado pela paixão e a paixão é como uma doença, uma febre, um vírus perigoso que nos faz dizer e fazer grandes asneiras…

- A tua sorte foi eu nunca ter arranjado outro homem – rosnou a mulher, escondendo as mãos debaixo das coxas.

- Estou aqui ao teu lado, não estou? Depois de tantos anos, nunca te deixei, o que mais queres?

- Agora já não quero nada, – respondeu entre dentes.

O olhar dele cruzou-se com o meu, como quem pede socorro. Era um homem sem vontade, apanhado na sua própria teia, como uma aranha inábil. Quase esbocei um sorriso, cortado a tempo com um olhar gélido da mulher.

Levantei-me e paguei o meu café no balcão sem olhar para trás. Estou cansada de casais infelizes, prefiro sempre um bom livro a uma relação sofrível. É preciso ambição para tudo na vida, até para o amor. Sobretudo para o amor. Se calhar, é por estas e por outras que sigo só, por um caminho sem poços, nem armadilhas, nem espinhos.

Talvez a liberdade mais suprema seja isto mesmo, não me sentir presa ao desamor que reina no mundo.

Leia também

você vai gostar de...

Mais notícias de Pessoas Como Nós

A menina Clarinha e eu

A menina Clarinha e eu

Não sei quantas vezes tentei esquecer-te, talvez menos do que tu e mais do que o meu coração aguenta, a única que sinto é que, cada vez que a dou espaço à razão, o meu coração começa a encolher-se como um bolo sem fermento, a vida fica sem açúcar e os dias sem sabor.
Mergulhar no futuro

Mergulhar no futuro

Agora, enquanto a ameaça da pandemia pairar sobre Portugal e o mundo, espero pacientemente por aquele momento mágico em que vou poder voltar a mergulhar no mar. A vida ensinou-me a mergulhar no futuro, mesmo quando o futuro é um lugar vago e incerto.
Com cinco letras apenas

Com cinco letras apenas

É engraçado como as palavras mais belas e mais importantes têm três, quatro ou cinco letras. Mãe, pai, avô, avó, tio, tia, filho, paz, saúde, sonho, amor, fado. Beijo, abraço, toque, sim, não, já, agora, calma, vem, fica.
Claras em Castelo

Claras em Castelo

Estar fechada em casa não me custa, o que me custa é não ver o meu filho e os meus pais, as minhas sobrinhas e os meus irmãos, as minha amigas e amigos. Na verdade, o que me custa ainda mais, é não acreditar que, quando a pandemia passar, as pessoas não vão mudar. Agora acreditam que sim, estão paralisadas pelo medo, mas são apenas boas intenções, porque as pessoas não mudam.

Subscrever Subscreva a newsletter e receba diariamente todas as noticias de forma confortável