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Margarida Rebelo Pinto
Margarida Rebelo Pinto Pessoas Como Nós

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Pirata do Tejo

Ninguém muda ninguém. As pessoas só mudam quando querem e quase nunca querem.
07 de março de 2019 às 22:24
lisboa, tejo, veleiros, turismo
lisboa, tejo, veleiros, turismo Foto: D.R.

Diz quem anda na vida de embarcadiço que há três tipos de homens: os mortos, os vivos e os marinheiros, que não são nem uma coisa nem outra.

Sempre tive um grande fascínio por barcos, o que me fazia velejar sempre que tinha oportunidade durante a adolescência. A vida de marinheira parou quando de um dia para o outro comecei a enjoar e nunca mais consegui voltar a sentir-me à vontade no mar.

Tinha vinte e poucos anos e namorava com o Tiago que tinha uma pequena embarcação à vela, o Sex Bomb. O Tiago faz parte daquele tipo de homens que tem imenso sucesso com as mulheres, sem ser giro nem ter uma grande figura, há tipos com esse carisma natural, vá-se lá saber porquê. Foi o namorado com mais sentido de humor que tive, dono e senhor de uma autoconfiança ao nível do Steve McQueen.

O namoro não chegou a completar um ano de vida. O meu pirata do Tejo tinha fama de manter várias miúdas ao mesmo tempo, mas parecia tão concentrado em mim que sempre dei desconto aos rumores. Até ao dia em que descobri caixas de preservativos na gaveta junto à cama na cabine. Eu tomava a pílula, aquilo estava ali para quê? Questionado sobre o achado, o Steve McQueen da Lapa, pretensamente concentrado ao leme do seu pequeno bordel flutuante, respondeu com o olhar refugiado no vazio do horizonte e aquela expressão de cabrão que não engana ninguém:

- Estão aí para o caso de algum amigo precisar.

O Tiago era obcecado pelo Sex Bomb, nunca o emprestava e o barco tinha apenas com uma cabine. Estávamos a dar uma volta no Tejo, nesse momento lembro-me que passávamos precisamente debaixo da ponte que já tinha mudado o nome em homenagem à revolução dos cravos. Ainda não existia o comboio que liga Sete Rios ao Fogueteiro. O ruido debaixo da ponte é bastante característico. Nunca mais deixei de associar aquele ruído à sensação de náusea ao imaginar quantas miúdas teriam passado por ali durante a nossa relação. O Tiago saía sempre que podia, dizia que ia sozinho ou com este ou aquele amigo, os amigos nos dias seguintes confirmavam a passeata, imbuídos por aquele espírito masculino corporativista que é automaticamente acionado sempre que se revela necessário entrar em modo de proteção da coutada. Ele sabia fazer bem aquilo, talvez demasiado bem, porque a resposta revelava uma lata descomunal que não deixava margem para dúvidas a alguém com dois dedos de testa, e eu por acaso até tenho três, nasci com a testa demasiado alta, peculiaridade anatómica que aprendi a disfarçar com diferentes modelos de franja. Mordi a boca para ficar calada e acabei tudo quando voltei a sentir o chão debaixo dos pés. Só queria voltar a terra, pisar chão firme.

Finalmente dentro do meu carro, um Fiat Panda azul-escuro, senti que estava a salvo e comecei a chorar. Eu confiara nele, apesar de vários avisos à navegação. Talvez acreditasse, na inocência dos 20 anos, que o poderia mudar, mas ninguém muda ninguém. As pessoas só mudam quando querem e quase nunca querem.

Não voltei a atender-lhe o telefone. Por mais que me custasse, não nasci para ser encornada. O meu coração congelou e o meu corpo também. Passei umas semanas tristonha, fui reagindo aos poucos, comecei a sair e a conhecer outros rapazes.

Demorei muito tempo a esquecer o pirata, mas a desilusão vence sempre o amor. Nunca mais atraí o género conquistador. É como se tivesse ficado vacinada. O mundo está povoado de piratas que navegam em todos os rios e mares do Planeta Azul.

Ainda assim, é bom lembrar que há sempre mais marés do que marinheiros.

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