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Margarida Rebelo Pinto
Margarida Rebelo Pinto Pessoas Como Nós

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Cuba livre

Só o coração manda no próprio coração.
08 de fevereiro de 2019 às 08:00
Havana
Havana

Na mítica Cuba existe um ditado que ouvi há alguns anos, durante a única vez que visitei a ilha de Fidel, que nunca mais esqueci: "los amores qué no muéren, matán, y los que matán no muéren". A magia de Havana entra rapidamente para o sistema sanguíneo de qualquer mortal com os seus prédios degradados de imponente traça colonial, o mar batido e muito azul, os carros antigos que o embargo de 1960 transformou numa das grandes atrações turísticas do país, as cores vivas das roupas justas nas raparigas que se bamboleiam pelas ruas, o brilho do olhar lúbrico que lançam aos turistas, as casas que são restaurantes, a música, a dança, tudo me ficou gravado na memória como um filme impossível de esquecer.

Não voltei a Cuba, quem lá vai diz que está tudo na mesma, como se o espírito de El Comandante tivesse sobrevivido à sua morte e continuado a dominar a capital e o país. É um país carregado de superstições, dizem que traz boa sorte nadar no mar quando caem as primeiras chuvas de Maio e as mulheres grávidas não saem de casa em noites de eclipse. Durante a minha estadia conheci um escritor que me contou que Fidel tinha vários esconderijos subterrâneos e cinco sósias para ninguém saber ao certo quem era e por onde andava. Também me disse que o povo cubano adorava o líder e detestava o regime, paradoxo que me deixou perplexa e que demorei alguns anos a entender.

Como é que se pode amar parte de uma coisa e não gostar do seu todo? O inverso é mais fácil de aceitar. Podemos adorar uma pessoa e ainda assim detestar alguns defeitos que ela tem, mas esses defeitos não nos fazem não gostar dela, ou deixar de gostar por causa disso. Ou será que sim?

Perguntei à Bárbara se já lhe tinha acontecido gostar assim de alguém. Respondeu, "é evidente, já toda a gente passou por isso, só tu é que não". Somos vizinhas de condomínio, vou jantar a casa dela quase todas as segundas-feiras da minha vida, desde que ficámos amigas numa tarde de verão, quando descobrimos que o PT do ginásio do bairro andava atrás das duas ao mesmo tempo. Nenhuma lhe pegou na altura, no meu caso porque nunca consegui interessar-me pelo género fit, a Bárbara porque não estava para ali virada. O que me une à Bárbara é ele ser tão diferente de mim em tanta coisa. A sua visão do mundo é outra, mais pragmática, mas racional, talvez mais próxima daquilo a que as pessoas comuns chamam de realidade. É natural, porque ela é advogada e eu sou designer gráfica numa editora. Ela vive no mundo real e eu vivo dentro do écran meu iMac gigante a imaginar capas de livros que nunca li. Reporto ao director editorial que tem a mania de me tratar como se eu ainda andasse na infantil só porque tenho cara de miúda, apesar de ser só meia dúzia de anos mais nova do que ele.

Há uma semana tive de fazer uma capa para um livro de uma escritora espanhola que se apaixonou por um cubano e disfarçou a sua aventura erótica com nomes fictícios. O meu chefe já desistiu de me pedir para ler os livros, agora conta-me o enredo e o que ele acredita ser o conceito para a capa e eu concentro-me a procurar imagens que contem a história que ele quer que venha contada na capa. Às vezes acerto logo nos primeiros ensaios, outras a minha vida complica-se e ando às voltas até chegar a um lado qualquer que o deixe satisfeito. Com este livro foi mais fácil, tenho Havana na cabeça e no coração, estava muito apaixonada quando viajei para lá, depois tive um grande desgosto de amor com direito a ressaca durante um ano até tudo passar à história.

Gostava de voltar a Cuba contigo, também te tenho espalhado pela cabeça, coração e nervos. Foste o último homem que entrou para o meu sistema sanguíneo, por mais que tente, não consegui ainda esquecer-te. Tínhamos a viagem mais ou menos planeada, lembras-te? Já não me lembro se falámos nisso há três verões ou no verão passado, mas o tempo não manda no coração, nem na vida. Só o coração manda no próprio coração, também é uma espécie de ilha, pelo menos o meu, embargado há que tempos sem saber quando será livre.

Cuba também não sabe quando será, e não é por isso que os cubanos são menos felizes ou curtem menos a vida.

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