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Margarida Rebelo Pinto
Margarida Rebelo Pinto Pessoas Como Nós

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Enquanto a primavera não chega

"Uma senhora nunca desce do salto", dizia a minha tia Dinora, impassível perante as repetidas manobras de charme do meu tio Luís.
15 de fevereiro de 2019 às 11:02
jardim de santos, jardim, parque, lisboa, santos
jardim de santos, jardim, parque, lisboa, santos Foto: D.R.

Acordar, respirar fundo, lavar a cara com água muito fria para disfarçar o inchaço, prender o cabelo, tomar um duche morno, escolher o que vestir, olhar para o iphone e consultar a meteorologia antes de eleger o casaco do dia, pôr creme na cara e nas mãos, dar uma borrifada de perfume na parte interior dos pulsos enquanto penso que qualquer dia devia mudar de perfume, sair de casa e caminhar cinco minutos até à estação, esperar o comboio chegar, procurar um lugar na última carruagem e ouvir um audiobook enquanto o olhar se perde no azul imenso do rio até a estação de Santos. Aí, é só atravessar a passagem aérea e cruzar o jardim em direção ao Museu de Arte Antiga, respirar fundo outra vez e subir até ao terceiro andar sem elevador da agência de comunicação onde trabalho há sete anos.

Dizem que sete é um número mágico, que a vida de reorganiza de sete em sete anos, que as células do corpo humano se renovam por inteiro durante este período, e eu penso que isso é tudo muito bonito, mas partindo do principio que cada corpo tem uma média de dez triliões de células, quais são as que se renovam primeiro? E ainda que soubéssemos tal informação, de que forma isso nos ajudaria a ser mais felizes, ou melhores pessoas, ou as duas coisas?

Vim para a agência porque entrei em rota de colisão frontal com o director no jornal diário onde trabalhava também há sete anos. Ele assumira o cargo há seis meses, tempo suficiente para criarmos um ódio de estimação, visceral e incontrolável. Eu tinha nojo do cabelo mal lavado e mal cortado dele, da caspa que se agarrava às suas camisolas velhas e coçadas de cor indistinta e aos casacos de mau corte. Detestava os dentes amarelos dos cigarros e tortos para a direita – ou talvez fosse para a esquerda, nunca fui boa nisto –. Ele detestava o meu ar de beta, chama-me beta na cara e referia-se a mim como "aquela beta que tem a mania que é boa", e, quando bebia uns copos nos jantares de grupo, acabava por confessar que eu era mesmo boa. Nunca quis aprofundar se o adjetivo em questão para me classificar profissionalmente ou fruto do impulso primata alusivo às minhas curvas, preferi sempre fazer-me de parva que é uma arte que se aprende com as mães, as tias e as avós quando os maridos se portam mal, mas elas não querem dar o flanco.

"Uma senhora nunca desce do salto", dizia a minha tia Dinora, impassível perante as repetidas manobras de charme do meu tio Luís. Eu tinha seis ou sete anos quando ela me levou aos Por-Fí-Ri-Os, aquela loja de roupa sensacional na Baixa que todas as miúdas queriam conhecer, onde me comprou umas calças à boca de sino encarnadas e uma camisola de gola alta azul petróleo de terylene. Depois subimos a Rua do Carmo e a Rua Garrett até à Bénard. Quando entrámos vimos o meu tio Luís sentado com uma loira muito nova e muito bonita. A tia Dinora parou de repente, deu-me a mão que estava gelada e disse:

- Acho melhor irmos antes à Brasileira.

Fingi que não vi o meu tio, na Brasileira a minha tia pediu um chá preto e duas bolas de Berlim com creme que devorou sem respirar. Comi meia torrada aparada e tive de me controlar para não tocar no assunto. Segui o sábio conselho da minha mãe, "quando não tiveres a certeza que o que vais dizer ou perguntar é boa ideia, fica calada". Foi esta a minha primeira experiência com traição. Ver o meu tio com outra e observar como a minha tia conseguia disfarçar tal evidência.

Infelizmente nunca consegui disfarçar o menosprezo que sentia pelo meu director, contaminado com ideais socialistas que usava como arma para disfarçar seus complexos de integração social. Desde o primeiro dia percebeu que não o respeitava, em parte porque já tinha sido acusado de plágio na revista onde fora editor anteriormente, em parte porque sempre me irritou o género do pretenso intelectual de esquerda que se acha naturalmente superior a quem não partilhe a sua ideologia. Em seis meses fui despachada.

Tenho saudades do burburinho das redações, da adrenalina de uma investigação que pode dar um furo jornalístico, mas prefiro viver longe de quem me quer mal. Enquanto a primavera não chega, vou ouvindo histórias dos outros no comboio, sempre em inglês, para enriquecer o vocabulário e aperfeiçoar o idioma, já que não consigo enriquecer a minha vida nem aperfeiçoar os meus dias mais do que isto. E isto é aceitar a vida como ela é, respirar mais fundo sempre que sinto a ansiedade a disparar e desejar que a renovação das células se complete para nunca mais olhar para trás. Quem sabe o telefone toca e qualquer dia volto para uma redação qualquer, antes que as flores dos jacarandás voltem a pintar Lisboa daquela cor linda e suave que é também a cor dos mortos.

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