As bombas, a vida no bunker e as 48 horas sem dormir, o medo de morrer... Francisco Penim conta, ao detalhe, o que viveu na Ucrânia e porque decidiu voltar
Se fosse hoje, não voltava a ir para a Ucrânia. "Causei muita dor à minha mãe, ao meu pai e aos meus filhos", assume. Mas não se arrepende do que viveu, do que contou em direto, de nada. Menos de 24 horas depois de aterrar em Lisboa, Francisco Penim, enviado da CMTV a Kiev, conversou longamente com The Mag. Falou de tudo, contou tudo pormenorizadamente, como num filme. Mais magro, muito cansado, diz que ainda não "aterrou". Sabe que esta experiência o mudou, não tem pesadelos, mas há coisas que nunca irá esquecer. Estas, no relato que se segue...
Como é que estás?[suspira] Estou bem. Quando é que chegaste?
Quando é que chegaste?
Porquê?Eu e o André tínhamos falado um bocadinho sobre: ‘Vamos para uma situação onde nenhum de nós sabe o que vai acontecer e tem de haver um limite. Qual é o limite?’ E a resposta é: ‘Não sei’.
Mas vocês perguntaram-se isso ou pensaram?Não, não. Verbalizámos. Antes de ir, acho que estávamos no aeroporto.
Estamos a falar de quando?Dia 19. Dia 19 foi quando fomos.
ANTES. Foste tu que quiseste ir cobrir o conflito na Ucrânia?
Foste tu que quiseste ir cobrir o conflito na Ucrânia?
Então foi uma questão quase de dever?Acho que é intrínseco do cargo. A pessoa responsável pela secção internacional da CMTV quando há uma situação destas ou outra, as eleições nos Estados Unidos... Nem se precisa de propor.
Mas voltando atrás. Vocês foram para o aeroporto a debater os "limites" e...Antes de chegarmos a Kiev, eu e o meu repórter de imagem tivemos uma discussão sobre isso. Eu não consegui por limite nenhum porque o meu limite é: eu vou para um sitio contar uma história e isso é uma oportunidade única. Ainda não havia guerra, entenda-se. Ainda sem guerra, enquanto jornalista percebo que ali há uma grande história e eu gostava de estar perto dela para contá-la.
E o que é que o teu câmera te diz?Nós não sabemos o que vai acontecer. É difícil de delinear mas é importante verbalizarmos, somos uma equipa.
Ou estão juntos para tudo ou não estão juntos para nada.É exatamente isso. Quando decidimos recuar – porque decidimos fazê-lo – não houve uma votação. Houve uma conversa sobre se era o momento ou não.
Já vamos falar sobre "recuar". Tu chegas a Kiev e ainda não estamos em guerra. É a primeira vez que vais para um cenário de pré-guerra?Sim, é a primeira vez.
A CHEGADA Chegas lá e lembraste da tua primeira sensação?
Chegas lá e lembraste da tua primeira sensação?
Porquê?Porque havia trânsito, semáforos, bebés, brincadeira... Uma vida normalíssima. Porque havia Uber Eats, sushi, pizza...
Então não há a noção de perigo nesse momento?Não. Há uma noção que eu, enquanto jornalista, sei que estou perto do perigo.
Há uma tensão no ar, é isso?A tensão no ar que tu sentes está muito mascarada por: eles são um povo mais fechado do que nós. Olha-se na cara deles e é mais difícil de perceber no que é que aquele tipo está a pensar. Outra coisa: a língua. Ninguém fala inglês e, claro, ninguém é um exagero meu.
Tinhas intérprete?No primeiro e segundo dia não. Só no terceiro. No primeiro dia fiz reportagem só com pessoas que falavam inglês. "É um bocadinho difícil para mim dizer-te os dias e as horas... é difícil. Acho que consigo uma linha dos acontecimentos, mas às vezes tenho dúvidas. Quando é que eu entrei em modo de guerra? Há uma noite em que acordo duas vezes com um barulho surdo lá muito ao fundo..."
Viste-te obrigado a arranjar um intérprete que andasse contigo...Era quase impossível estar lá a fazer jornalismo se as pessoas não falam inglês e não conseguem comunicar comigo. Claro que consegues fazer qualquer coisa, mas não consegues fazer o que queres.
PRIMEIROS SINAIS DE GUERRA Quando é que tens, pela primeira vez, a sensação que aquilo ia piorar?
Quando é que tens, pela primeira vez, a sensação que aquilo ia piorar?
Estavas num hotel grande? Não. Primeiro estive num que não me lembro do nome e depois mudámos para o hotel Ucrânia, que é um dos hotéis na Praça da Independência. É um hotel com uma estrutura stalinista, muito União Soviética.
Por que mudaste?Mudei-me. O primeiro hotel estava em obras, tinha um tapume que não dava para fazer diretos com a janela aberta. A janela não abria e isso é um problema. E depois porque havia só um elevador a funcionar. Demorávamos muito tempo a andar para baixo e para cima e tínhamos muito material. O outro estava a 200 metros do primeiro, na Praça da Independência, com um fantástico sitio para fazer diretos. Abria-se a janela e via-se a praça onde, em 2014, morrem cento e poucas pessoas.
Mas quando foi a primeira vez que sentiste perigo, então?Com as sirenes. Estava a dormir, acordei e pensei: o que é isto? Com a segunda vez fiquei em alerta.
E o que é que se faz num momento desses?Para ser sincero esperei para ter a certeza se era uma explosão ou não. Não ouvi mais e pensei que não era nada. Mas às 06:30 oiço a sirene e não há que enganar: para mim, sirene é sinónimo de vêm aí bombas. "Quando ouvi a sirene fiquei incrédulo. Depois pensei: estou num filme, no sentido em que há alguma dificuldade em processar que aquilo é real"
O que fizeste nesse momento?Peguei no telemóvel e comecei a gravar na janela. Consegui apanhar a segunda sirene. Fiz uma panorâmica pela cidade. Já havia pessoas na rua, já havia carros e um horizonte iluminado com as primeiras luzes do dia.
Entre as sirenes e o momento em que se tem a certeza que se está na guerra, o que é que se sente? O que senti quando ouvi a sirene foi ficar incrédulo. Depois pensei: estou num filme, no sentido em que há alguma dificuldade em processar que aquilo é real. Mas depois, aparentemente, não acontece nada.
E tudo estás sempre à espera que aconteça.E começo a ficar alerta. Os carros estão a andar, param no vermelho, as pessoas estavam a atravessar a passadeira, a tirar selfies, fotografias, a entrar nos restaurantes. Os restaurantes estavam abertos. Parecia que estava tudo a andar numa velocidade que não é igual à do som da sirene. Há muitas coisas que parecem irreais e que eu tive alguma dificuldade em processar.
O EPISÓDIO DO CARRO E DAS BOMBAS E como é que passas daí para perceberes que já estás em guerra e, a partir de então, em perigo?
E como é que passas daí para perceberes que já estás em guerra e, a partir de então, em perigo?
Aquele que se vê do carro?Sim, em direto. Aquele em que estou no carro a fazer um direto, o André Germano ao meu lado e eu a guiar ao mesmo tempo. "Lembro-me de ver um homem da Glovo a entregar comida. Pensar: sou eu que estou a ficar maluco ou são eles?"
Isso é na própria quinta-feira. Ou seja, vocês vão para a rua, no carro, a fazer um direto e, de repente...Percebemos que há uma coluna de fumo. Achámos que havia um incêndio. Ainda não havia o registo de que havia um bombardeamento. À medida que nos vamos aproximando percebemos que havia chamas.
Francisco, quando vimos isto na televisão, ouvimo-vos a dizer que era uma explosão, que eram bombas, mas ao mesmo tempo olhamos para o lado e vemos a realidade paralela: carros a passar tranquilamente, como se nada acontecesse. Uma vida normalíssima. Era assim?Era assim. Uma normalidade anormal. É uma coisa que não se consegue explicar. Até determinado momento as pessoas estavam na rua e a fazer a sua vida normal. Lembro-me de ver um homem da Glovo a entregar comida. Pensar: sou eu que estou a ficar maluco ou são eles? E não sabia responder.
Falavam com colegas de outras estações, trocavam ideias sobre isto?Nós não estávamos no mesmo hotel que outros jornalistas portugueses.
Mas não havia jornalistas de todo?Havia jornalistas de outros países.
E com eles? Falavam?Em tempo de paz, não. Há um tempo de paz, depois há ali um intermédio em que não sabes se é paz ou se é guerra, e depois há um tempo de guerra. Em guerra esteve toda a gente em contacto.
Mas neste momento já estavas em guerra.Sim mas o problema é que ainda não tens a perceção que estás mesmo em guerra.
Quando é que tens essa perceção?Depois da cena do direto da explosão há um momento em que chegamos ao hotel e não há funcionários porque eles fugiram e pensei: os funcionários só fogem se estiverem em risco de vida. Eles só estariam em risco de vida se a guerra começasse. E aí, passas para a segunda situação: estou bem no hotel? Estou em segurança?
Vocês tinham todas as comunicações que precisavam? Telefones, internet...Tínhamos. Podiam consultar sites e tudo o que precisassem?Podíamos. Verdade.
FUGIR PARA OUTRO HOTEL Chegas ao hotel, não vês funcionários e o que é que procuras?
Chegas ao hotel, não vês funcionários e o que é que procuras?
Há mais hospedes no hotel?Havia mais hospedes que sabiam tão pouco ou menos que nós.
Tinham garagem?Não. Nem havia bunker nesse hotel. Era muito antigo, muito soviético.
E não tinhas outro hotel para onde ir?Não. E tínhamos que sair. Não podia arriscar a ficar fechado naquele hotel sem bunker e a dois quarteiros de distância de um edifício do Parlamento que seria, quase de certeza, um alvo. Nós tínhamos que sair, não podíamos esperar. Tínhamos a ideia de um hotel, um hotel onde houvesse uma equipa portuguesa.
E foram?Fomos. Fui buscar as minhas coisas e, em trânsito do meu piso para o dele, pensei que não podia andar de elevador porque se o aparelho parasse sem funcionários, eu não conseguia sair dali e já estava em clima de pré-guerra. Fomos de carro, já de noite, a meio de um recolhimento obrigatório, sem diretos, à procura do hotel, que não foi fácil. Fomos parados duas vezes, identificaram-nos...
Estavam sempre identificados como 'press'?Sim. Tínhamos coletes à prova de bala e os coletes dizem Press e temos obrigatoriamente os passaportes e a carteira de jornalista. E os policias mal falam inglês, obrigam-nos a voltar para trás. Por portas e travessas lá conseguimos chegar àquele que achávamos que era o nosso novo hotel. Eu saio, há um segurança que vem à porta e eu pergunto se tinham quartos. Ele, muito simpaticamente, diz-me que sim, claro. Havia rececionista. Naquele hotel ninguém tinha fugido.
Como é que tu explicas isto?Não consigo explicar. Um era mais antigo, o ouro mais moderno. As rececionistas eram pessoas mais novas, no outro eram mais velhos... Não sei.
Vais à receção e arranjam-te um quarto.Melhor, arranjam-me dois quartos. Subimos ao nosso quarto onde continuámos a falar e a meio da conversa, devia ser uma e qualquer coisa da manhã, quando recebemos um alerta a dizer que o bombardeamento ia começar naquele dia.
Recebem um alerta como?Recebemos um "push" [notificação de notícia na internet]. Achei aquela informação muito credível. Disse-lhe para irmos imediatamente para o bunker.
O hotel tinha um bunker?Tinha. Nesse ato, em 10 minutos, eu desço, encontro a rececionista que pergunta se nos íamos já embora, ainda agora tínhamos chegado. Disse-lhe que tinha uma informação credível, que não a queria assustar, mas que o bombardeamento dos russos começava às 3 da manhã. Ela telefonou ao chefe de segurança e apareceu um homem que se identificou e perguntou o que é que se passava. Eu contei-lhe tudo e ele disse-me que não havia problema. "No problem". Depois disse-me que eu dentro daquele hotel estava seguro porque os homens dele estavam ali para proteger as pessoas. Perguntei-lhe o que era isso de "os meus homens"? E ele disse-me que tinha homens naquele hotel que estavam armados e que iam proteger as pessoas que ali estavam. Que a partir dali só entrava naquele hotel quem ele quisesse e quem ele aceitasse. Mostrou-me o bunker e eu fiquei a saber como é que se desce, como é que se sobe, onde é que é a casa de banho.
Chegaste a perceber que chefe de segurança era esse?Ele identificou-se como ucraniano e eslavo.
Mas era tipo uma "milícia"? Um segurança privado?Ele não estava fardado, logo não era militar. Devia ser um ex-militar. Tinha ar de quem já tinha sido militar no passado e agora era consultor. Os homens dele tinham ar de mercenários. Dois metros de altura, dos metros de lado, cada um com a sua kalashnikov... a jogar no seu telemóvel.
Em momento algum sentiste que podias estar a ser traído? Que aquele podia ser o homem que ia acabar contigo?Nesse momento não. Pensei nisso um bocadinho mais à frente. Naquele momento senti-me em segurança. Tinha bunker, um chefe de segurança, funcionários e outros jornalistas. "Apareceu um homem que se identificou [,como chefe de segurança]. Disse-me que eu dentro daquele hotel estava seguro porque os homens dele estavam ali para proteger as pessoas. (...) Tinha ar de quem já tinha sido militar no passado e agora era consultor. Os homens dele tinham ar de mercenários. Dois metros de altura, dos metros de lado, cada um com a sua kalashnikov... a jogar no seu telemóvel."
"Apareceu um homem que se identificou [,como chefe de segurança]. Disse-me que eu dentro daquele hotel estava seguro porque os homens dele estavam ali para proteger as pessoas. (...) Tinha ar de quem já tinha sido militar no passado e agora era consultor. Os homens dele tinham ar de mercenários. Dois metros de altura, dos metros de lado, cada um com a sua kalashnikov... a jogar no seu telemóvel."
Lembras-te do nome do hotel?Sim, Sky Loft Kiev. Nessa noite, esse homens estavam no loby, descontraídos como estamos aqui, cada um com a sua kalashnikov e com um ar muito duro. Pensei que corria muito mais riscos em estar a olhar para eles do que agir normalmente. Não por medo mas por respeito.
A VIDA NO BUNKER E O MEDO DA MORTE Ficaram no bunker quanto tempo?
Ficaram no bunker quanto tempo?
Nessa noite ouviram-se bombardeamentos?No bunker não se ouve nada.
Dorme-se no chão?Sim, não há nenhum acomodamento ou facilidade. Éramos nós os dois, os seis franceses e as duas meninas da receção. Todos a dormir no mesmo espaço.
E os outros jornalistas portugueses? Onde é que andavam?Não estavam ali naquela noite, nem questionei.
Conseguiste dormir alguma coisa nessa noite?Nada. É a primeira experiencia que tenho de privação de sono. Estava muito cansado, não conseguia dormir. Tinha medo de conseguir dormir e medo de não conseguir dormir. Tens medo de não acordar, que aquilo seja atingido e desabe...No bunker as pessoas estão caladas?Sim. Ninguém diz nada a ninguém. "Estava muito cansado, não conseguia dormir. Tinha medo de conseguir dormir e medo de não conseguir dormir. Tens medo de não acordar, que aquilo seja atingido e desabe..."
É como se estivessem à espera? Um silêncio pesado...É um silêncio cansado. É um silencio para dentro.
No que é que se pensa? Em Portugal? Em casa? Na cobertura? Em tudo ao mesmo tempo e não pensas em nada? O que é que te vem à cabeça?Acho que pensei no trabalho no sentido que estava a fazer o melhor que conseguia. As pessoas em casa estão a perceber o que se está a passar? Estão a seguir a imagem? E o discurso? Sim ou não? O que é que eu posso tentar fazer melhor?
E mais?Depois a outra preocupação que eram os meus pais e os meus filhos. Eles sabiam que eu estava lá, estavam a assistir ao que eu estava a fazer.
Eles conseguiam contactar contigo?Conseguiam. Conseguiram sempre.
Mandavam mensagens?Mandavam mensagem e falávamos às vezes.
Mas iam perguntando se estavas bem?Sim e eu fazia questão de dizer que estava bem e que me estava a sentir bem. Não contava tudo mas contava que mudava de hotel e que estava bem ou dizia que estava no bunker mas estava bem. Nesse género de coisas ia mantendo a minha família atualizada."A outra preocupação que eram os meus pais e os meus filhos. Eles sabiam que eu estava lá, estavam a assistir ao que eu estava a fazer."
É a preocupação de não os preocupar a eles... Sim porque basta não comeres um dia para eles dizerem logo que estás mais magro, que não fizeste a barba, que estás com um ar cansado. O facto de eu não fazer a barba para a minha mãe é uma preocupação.
Tinhas medo de morrer? Pensavas nisso?O que pensei foi: "o que é que eu estou aqui a fazer?". Até te posso dizer o primeiro instante em que pensei nisso: quando saímos do segundo hotel, em que os funcionários fugiram, desci do quinto andar para o rés do chão, muito carregado e do 1 para o 0 sem luz. Só para perceberes o envolvimento: cansado, com muitas coisas, muito peso e lembro-me de estar a descer e pensar no que é que estávamos ali a fazer.
Quando se está numa situação destas é cada um por si? Há um sentimento de sobrevivência ou há entre-ajuda? Sente-se que cada um tem que salvar a sua pele?Nunca senti isso. Nunca com o Germano [cameraman da CMTV]. Mais à frente, quando decidimos recuar para a fronteira éramos quatro: dois da CMTV e dois de outra estação. Nunca senti isso entre nós os quatro. Senti que estávamos todos no mesmo barco. "O que pensei foi: "o que é que eu estou aqui a fazer?". Até te posso dizer o primeiro instante em que pensei nisso: quando saímos do segundo hotel, em que os funcionários fugiram, desci do quinto andar para o rés do chão, muito carregado e do 1 para o 0 sem luz. Só para perceberes o envolvimento: cansado, com muitas coisas, muito peso e lembro-me de estar a descer e pensar no que é que estávamos ali a fazer."
"O que pensei foi: "o que é que eu estou aqui a fazer?". Até te posso dizer o primeiro instante em que pensei nisso: quando saímos do segundo hotel, em que os funcionários fugiram, desci do quinto andar para o rés do chão, muito carregado e do 1 para o 0 sem luz. Só para perceberes o envolvimento: cansado, com muitas coisas, muito peso e lembro-me de estar a descer e pensar no que é que estávamos ali a fazer."
A 'FUGA" Quando é que tudo começou a pior? Quando é que começaste a sentir que estavas a ficar "sem chão"?
Quando é que tudo começou a pior? Quando é que começaste a sentir que estavas a ficar "sem chão"?
A partir daí sentiste-te me perigo?Sim.
Mas disseste que te sentias mais seguro no outro hotel.Sim mas depois pensas que o hotel tem seguranças mas podiam começar a disparar contra aos russos – que nunca sabes onde estão – eles vêem essa cena e podem atacar o hotel. De repente penso que estava mais seguro... mas era melhor ir para o bunker.
Então passas a viver no bunker?Mais ou menos. Passámos lá duas noites: a primeira com jornsliatas franceses e a outra com todas as pessoas que seriam umas 40.
Isso no sábado?Não sei dizer. Diria que a segunda noite foi de sexta para sábado mas não sei.
O que é que piorou de uma noite para a outra?Havia mais bombardeamentos, mais imagens de bombardeamentos. A imagem do tanque a passar por cima do carro. A imagem do homem sozinho a mandar parar uma coluna de tanques. O avanço das tropas russas e informação e desinformação. "Sentes que não estás a pensar bem, que não consegues pensar bem e no meu caso, que tenho que falar, é pior ainda. Às vezes parecia dissonante até para mim próprio".
E aí entra a guerra psicológica.Depois um boato: os chechenos vão entrar. Isso assustou muito as rececionistas. Há a história de que os chechenos são "animais" e que vão arrasar tudo o que vão encontrar à frente. Não sei é se eles estavam lá. Havia relatos constantes nas televisões locais, na televisão internacional, de que os bombardeamentos iam ser maiores e foram. Isso piorou muito da primeira noite do bunker para a segunda.
Tens noção de quanto tempo estiveste sem dormir?Dois dias. 48 horas e ainda não tínhamos recuado. Depois foram mais 41 horas. O tempo é um novelo. Sentes que não estás a pensar bem, que não consegues pensar bem e no meu caso, que tenho que falar, é pior ainda. Às vezes parecia dissonante até para mim próprio.
É como se estivesses a sonhar? Num limbo?Para mim, que passo a minha vida a falar em direto e de improviso – que é o que eu faço todos os dias – é parecer que não consigo improvisar. Dizerem-me que vou fazer mais um direto e sentir que vou dizer o mesmo. Não tinha mais informação e decidi contar o que via. Se o que via era escuro, dizia que era escuro. É difícil. Se um carro está parado num semáforo vermelho e há bombardeamentos ao longe, vou dizer que há carros a parar no vermelho. Parecia que estava tudo normal. Via pessoas a passear um cão, dois velhinhos a vir das compras. Para uma pessoa Portugal pode parecer ridículo mas era o que se passava. Era uma coisa emotiva, de sensação, é uma coisa humana, portanto eu contei!
E não te arrependes?Não me arrependo de nada do que contei.
Quando é que percebem que têm que ser ir embora? Mandam-vos embora?Não, de todo. Nunca nos mandaram embora. A decisão tem que ser ponderada e de equipa, que envolve também as pessoas de Lisboa. Tenho uma responsabilidade perante a minha entidade patronal, o meu canal e os jornalistas do meu canal, os meus colegas. Quero fazer o melhor trabalho possível, quero estar no sitio onde está a história até ser possível. Mas, se eu não voltar vivo não conto a história. O limite foi nessa noite. O meu regresso é também o regresso dos refugiados. Sou uma espécie de refugiado, e embora eu não queira ser a história, vou experienciar o que é a retirada. "Não me arrependo de nada do que contei."
Então falas com o Germano e decidem que está na altura. Essa conversa é tida durante a noite? No bunker?Essa conversa é no final da noite. Às 08:00 da manhã saímos.
Como é que se sai? Pega-se no carro e vem-se embora?É parecido com isso. Partilhámos esta inquietação com mais jornalistas portugueses. Acordámos e quatro de nós íamos sair.
Porque é que os outros ficaram?Foi uma decisão. As pessoas que decidiram sair fomos nós os dois e outros dois jornalistas portugueses. Fomos no mesmo carro quatro. Depois de estar esse grupo reunidos passámos a ser uma equipa. Somos adversários nas audiências mas ali somos a mesma equipa, no mesmo carro. É preciso pôr "press tv" no carro, meter mais gasolina..
Conseguia-se pôr gasolina?Não. Tivemos que perceber a distância a que estávamos do sitio que íamos sair e eram centenas de quilómetros e tínhamos menos de metade de depósito. Aquilo não são estradas, são caminhos de cabras. Sabíamos que não havia gasolineiras abertas, não havia diesel, que o que havia estava racionado e não sabiamos onde havia uma bomba de gasolina. Apenas sabiamos que no caminho havíamos de encontrar.
Fazem a viagem toda sem ver ninguém ou com trânsito?A mais difícil e a mais arriscada foi a saída de Kiev com muita tropa e muitos homens armados. Pouca gente a mandar parar mas não se sabe quem são aquelas pessoas. Vê-se veículos virados ao contrário, incendiados, com balas... "Ouvires o hino ucraniano, a tocar num altifalante muito rasca, no meio de uma fila, numa bomba de gasolina. Caem as lágrimas..."
"Ouvires o hino ucraniano, a tocar num altifalante muito rasca, no meio de uma fila, numa bomba de gasolina. Caem as lágrimas..."
Aí sente-se medo?Sim, aí sim sente-se medo.
Saem de lá e vão para a Moldávia. Isso já é o recuo. Como foi a entrada na fronteira?
Muito difícil, de muita espera. Horas parados. Vêem-se as famílias. O homem na fronteira a deixar a mulher e os filhos e as malas. Voltam para trás sozinhos. Vês 100, 150 pessoas a fazer isso à tua frente. E pensas: vejo isto uma vez mas não consigo ver duas ou três vezes. É muito difícil de ver. Homens a chorar, a virem para trás.
Houve coisas que te emocionaram?Sim. Ouvires o hino ucraniano no meio de uma fila, numa bomba de gasolina. Caem as lágrimas. Não conhecia o hino, ouvi aquilo, a 100 kms da fronteira pensei que aquilo só podia ser o hino, a tocar num altifalante muito rasca. As pessoas todas param. Tens a certeza que aquilo é o hino e perguntas, um homem confirma.
Quando chegam à Moldávia, o que é que acontece?O nosso governo é que nos marcou onde ficar. O ministério dos negócios estrangeiros, através da embaixada lá, é que nos indicaram para aquele hotel. Não tivemos que procurar.
Assim que entras na Moldávia sentes-te mais seguro?Sentes-te um bocadinho mais seguro. Quando passas da Moldávia para a Roménia sentes-te ainda mais seguro, quando chegas a Bucareste mais seguro ainda. Assim que estás no primeiro avião, muito mais seguro. Depois na Alemanha, muito mais.
Quanto tempo demorou essa viagem?De Kiev ao hotel na Roménia, 41 horas.
Mas iam parando?Não. Sempre a andar. Com turnos de 6 horas a guiar. 41 horas depois de fugir de Kiev?
De fugir? É essa a palavra?De retirar. De fugir como os refugiados.
Sentes-te um refugiado?Sim.
Daí até chegar a Portugal quanto tempo passa?A retirada é às 08:00 de sábado de manhã e chegámos à 1 da manhã de segunda. Ficámos segunda e terça e chegámos quarta. Quarta em Bucareste.
Quando te deitas na cama do hotel na Roménia sentes-te outro ou nem pensas nisso?Sentes-te outro. A primeira noite depois da cama, não dormes tudo mas sentes-te outro.
Sonha-se com aquilo que se viu?Não. Zero. Há muito cansaço. Deitas-te e adormeces instantaneamente.
VOLTAR A CASA E quando chegas a Portugal?
E quando chegas a Portugal?
O que é que fizeste primeiro?Fui abraçar os meus filhos.
Antes de ires a casa?Os meus filhos estavam em minha casa, à minha espera. Fui comer e fiquei a falar com eles enquanto estava a comer. Isto já era 1 e tal da manhã quase 2 da manhã, eles tinham que entrar cedo no trabalho. Abracei-os, falei com eles, fui comer um bocadinho com o Manel que se levantava um bocadinho mais tarde do que a Maria.
Posso perguntar o que eles disseram?A Maria disse: ‘estás vivo’. E o Manel perguntou: ‘então pai, estás bem?’. Isso foram as primeiras coisas.
"Os meus filhos estavam em minha casa, à minha espera. Fui comer e fiquei a falar com eles"
Portanto a vida continua, não fizeram perguntas?
Portanto a vida continua, não fizeram perguntas?
No dia seguinte foste aos teus pais.Fui almoçar com eles. Levei-lhes um bolo que fui comprar no mesmo sitio onde vou sempre antes de ir almoçar com eles. E, antes disso, corri.
Que bolo era?Era uma tarde de maçã sem açúcar. E antes corri. Corri menos do que costume, mas eu corro muito. Corro seis vezes por semana e lá nunca corri.
Quando correr não pensas em nada?Não, desligo. Nem levo musica, não consigo. Fiz o que costumo fazer.
Depois ficaste sozinho?Não. Depois vim para aqui [redação da Cofina]. Corri, tomei banho, fui às compras, fui para a minha mãe mais cedo, fiquei lá, almocei, fiquei lá um bocadinho depois e vim para aqui.
Ainda não estiveste sozinho [até quinta-feira à noite]?Não, só quando dormi.
Mas ainda não "aterraste"?Acho que ainda não aterrei.
Não tens a sensação que tens uma história para contar? Não te sentiste a personagem de uma história enquanto vivias isto?Já me perguntaram se vou escrever um livro e não sei. Não sei se quero escrever um livro.
Valeu a pena?Claro que valeu a pena. Foi uma experiencia inacreditável, única. "Se soubesse o que sei hoje, teria dito que não ia, apesar da experiencia porque acho que causei muita dor à minha mãe, ao meu pai e aos meus filhos."
"Se soubesse o que sei hoje, teria dito que não ia, apesar da experiencia porque acho que causei muita dor à minha mãe, ao meu pai e aos meus filhos."
E se te perguntassem se querias ir amanhã?Não ia. Porquê? É uma coisa que está feita. Não tenho nenhum desejo de voltar a fazer e se soubesse o que sei hoje, teria dito que não ia, apesar da experiencia porque acho que causei muita dor à minha mãe, ao meu pai e aos meus filhos. O trabalho não pode estar acima disso. A minha preocupação é o trabalho mas o trabalho não é a minha vida. Não sou o que faço, faço o que sou.
Porquê?
Olhando para trás, isto mudou-te?Mudou-me, ainda não sei como.