De volta a Lisboa e sem papas na língua, Ivan Lins arrasa e humilha Bolsonaro que compara a Putin
Da agonia causada pela pandemia ao "psicopata" que tomou conta do seu país. Aos 74 anos, Ivan Lins, um dos maiores nomes da música brasileira, não deixa nada por dizer numa entrevista que começa exaltada mas onde também se fala de amor.
Há doze anos que a vida de Ivan Lins se divide entre Portugal e Brasil. Por cá, comprou um apartamento na zona de Belém, de onde, garante, ninguém o tira mais. Divide-se entre o pequeno estúdio caseiro e as tarefas doméstica no auxílio à mulher. "Também lavo pratos", diz entre risos.
Filho de militar e formado em química industrial, não seguiu nem as pisadas do pai, nem deu saída ao curso que tirou. Encantou-se pela música que nunca mais largou quando, no final dos anos 60, começou a tocar em festivais. Tem o piano como parceiro e o seu primeiro sucesso como compositor foi logo para a grande Elis Regina. Hoje é um dos maiores, no Brasil e fora dele (quem não se recorda de canções como 'Começar de Novo' ou 'Lembra de Mim'?). Nos EUA chegou a gravar com Quincy Jones, Ella Fitzgerald e Barbra Streisand. É um músico do mundo mas hoje facilmente pode ser encontrado a passear pelas ruas de Lisboa, a subir ao Castelo de S. Jorge ou a beber um vinho à beira Tejo.
E é a partir da sua morada em Lisboa, que fala da relação com Portugal, das caminhadas pela cidade, de gastronomia, de música e pandemia e lembra a partida do "amigo de uma vida" que deixou a cidade mais pobre, Carlos do Carmo. Neto e bisneto de portugueses, confessa que, por vezes, se sente "mais feliz" por cá do que no seu próprio país e desabafa, com dor e mágoa, sobre um Brasil "dividido" por causa de um "psicopata" chamado Bolsonaro, um "covarde", "manipulador", "narcisista" e "egocêntrico".
A uma semana de voltar aos palcos portugueses com o espetáculo 'Quero Falar de Amor' (7 de Abril no Teatro Tivoli BBVA), o cantor, de 74 anos, desfia memórias, recorda a infância e juventude no bairro do Andaraí, na zona norte do Rio de Janeiro, cheio de portugueses, lembra a primeira vez que tocou em Lisboa ("comecei com o pé direito", diz) e explica porque razão o amor é a única coisa que nos resta.
Os artistas começam finalmente a regressar à normalidade, depois de um período negro motivado pela pandemia. Como foram para si estes dois últimos anos?Foram muito pesados. No início da pandemia e com o aparecimento de várias opções, como ‘lives’ e entrevistas, até parecia que a coisa nos podia manter numa situação agradável.
Mas o contacto virtual não é a mesma coisa?Pois. À medida que o tempo passava eu ia sentindo uma enorme agonia, ficava depressivo. Eu queria era público e falar com as pessoas. É muito duro ser músico solitário. Para compor tudo bem, mas quando queremos chegar às pessoas e temos que continuar fechados em casa é muito ruim. Fica tudo pela imaginação, quando o que nós queremos é a coisa real. Mas isto também é mau para o público, porque ele quer é ver o artista. Este período para mim foi um desespero. Só agora é que estou a começar a reencontrar-me com as pessoas. Ainda recentemente estive no Rio de Janeiro nos dias 10,11 e 12 de março com teatros lotados e eu simplesmente chorei. Quando entrei em palco e o público aplaudiu não aguentei.
A QUESTÃO BOLSONARO Em Portugal fomos acompanhando com alguma preocupação a situação no Brasil que chegou a ser o país do mundo com maior número de casos. Como é que viveu esse período?
Em Portugal fomos acompanhando com alguma preocupação a situação no Brasil que chegou a ser o país do mundo com maior número de casos. Como é que viveu esse período?
"Ainda recentemente estive no Rio de Janeiro com teatros lotados e eu simplesmente chorei. Quando entrei em palco e o público aplaudiu não aguentei"
Mas porque é que acha que ele boicotou o sistema?Porque ele era contra a vacina. E não vale a pena insistir. Ele é contra e acabou. Ele é igual ao Putin, outro psicopata. Eu já começo a dizer aos meus amigos para nos irmos preparando porque ele não vai largar o osso. Ele é cheio de dissimulações, mente muito e usa justificações delirantes. E depois a inflexibilidade dele é total. Vai até ao fim e ninguém consegue mudar a cabeça de um psicopata. O Bolsonaro não muda, como o Putin não muda.
Mas recentemente ele foi distinguido com a Medalha do Mérito Indigena. Alguém deve gostar dele!Sim, ele foi homenageado pelos índios quando é ele o culpado pela maior mortandade de índios da nossa história por causa do Covid-19 e da invasão de terras para a busca de ouro. É tudo um horror. Ele transformou o Brasil num país que ficou desagradável para o mundo inteiro. Nós nunca fomos assim. O Brasil sempre foi um país querido e elogiado e ele consegui transformá-lo no quintal da casa dele.
"Ele [Bolsonaro] é igual ao Putin, outro psicopata."Acha que o Brasil está dividido?Sim, porque ele só governa para os seguidores dele, sendo que todos estão transformados em bonecos. É como se estivessem sentados ao colo dele e só ficassem a mexer a boca. Ele é que fala por todos. Por isso ele divide o país, até porque não admite conversar com um único adversário político. Não entra em debate e em nenhum tipo de conversação. Não faz entrevistas com perguntas que não sejam as que ele quer. Ele é um covarde como também é o Putin. O problema é que ele colocou a imagem do Brasil lá em baixo. Nós nunca tivemos isto na nossa história.
E como está a cultura no Brasil nesta era Bolsonaro?Essa é outra coisa pavorosa. Oitenta a noventa por cento da classe artística brasileira é contra ele e por isso somos todos comunistas. E ele diz que vai acabar com o comunismo no Brasil. Um dos grandes tópicos da próxima campanha dele é acabar com o comunismo. Mas ele prometeu isso há quatro anos e não fez nada (risos).
VAMOS FALAR DE AMOR... E DE LISBOA
Perante este estado de coisas e esta sua desilusão, o que resta mesmo é falar de amor!
Claro! Mais do que nunca e pela época que vivemos, temos mesmo que falar de amor. É a hora de darmos um bálsamo para as pessoas que estão a viver neste mundo conturbado. Não dá para andar a cantar tragédia, desgraça ou dor. É preciso levantar a moral do povo. Neste momento acho mesmo que os espetáculos musicais têm que ser leves e passar alegria sem precisarem de ser inconsequentes ou superficiais. Eu, por exemplo, acho que a minha música tem um texto positivo mas sério e contundente. O amor pode falar-se de muitas formas, é uma coisa muito ampla e é isso que o meu espetáculo vem trazer.
Que tipo de espetáculo é?São canções de sucesso escolhidas a dedo. É um espetáculo divertido porque eu também gosto muito de falar e contar umas piadas de vez em quando. É um espetáculo também muito emotivo porque eu sempre fui muito intenso naquilo que faço. Como tenho um enorme respeito pelo público, tento dar sempre o meu máximo. Tenho um enorme respeito pelo bilhete que o público paga para ver um artista.
Há quanto tempo não vinha a Portugal?Eu já tinha vindo em pandemia, há cerca de um ano, talvez até menos.
Até porque tem casa por cá!Sim. Comprei há doze anos na zona de Belém e daqui não saio. A casa que eu tenho cá é para sempre. Pode ser que a minha casa do Rio de Janeiro não seja, mas esta daqui é certamente (risos).
E como são as suas rotinas por cá?
Eu ando muito a pé. Gosto muito de caminhar. Vou muito desde Santos até ao castelo de S. Jorge, sempre por dentro, pelas ruelas. Lisboa é um encanto e sinto sempre que tenho uma ligação muito forte a ela, por conta do meu avô. Gosto também muito de ficar à beira do Tejo que é um rio maravilhoso a beber um vinho. Gosto tanto de vinho português que chego a ser chato (risos). Depois tenho as tarefas domésticas. Ajudo muito a minha mulher aqui em casa porque somos só nós os dois no apartamento e também lavo pratos (risos). Tenho também um estúdiozinho aqui em casa e vou compondo. Já tenho muitas músicas feitas em Portugal, especialmente fado. Tenho vários temas já gravados pelo Paulo de Carvalho, pela Mariza ou Cuca Roseta.
Falava de vinho, o Ivan também é fã da gastronomia portuguesa?Minha nossa! A gastronomia portuguesa é maravilhosa. É boa e variada. Apesar de Portugal ser um país pequeno, basta andar 40 quilómetros e entrar numa tasquinha para encontrar uma comida completamente diferente. É impressionante como tudo muda.
Como é para si regressar a Lisboa e não poder reencontrar e abraçar aquele que era o seu grande amigo português, o Carlos do Carmo?A saudade será eterna. O Carlos do Carmo era um dos meus melhores amigos da vida inteira. Foi uma pessoa muito importante para mim, não só como amigo mas como artista, como mestre, até pela atitude que tinha perante a arte. Era um homem que amava e tratava bem o seu país. Ele levou o fado para fora de Portugal e é, depois da Amália, o grande responsável pelo sucesso que o fado tem hoje no mundo. Ele foi um homem extraordinário e esse lado dele vai viver para sempre dentro de mim.
A sua relação com Portugal já tem mais de quarenta anos. Ainda se recorda como tudo começou?Claro! Eu comecei com o pé direito. Vim para fazer um espetáculo na Festa do Avante em 1981 e o público não me deixou sair do palco. Recordo-me que fechei uma noite de sábado e que estavam perto de 100 mil pessoas na assistência. Eu acabava de cantar, saía do palco e as pessoas pediam-me para voltar, uma e outra e outra vez. A determinada altura fui eu que tive que pedir a todos para irem para casa (risos). Então arranjei o refrão de uma música minha e sugeri que todos deixassem o recinto a cantar: "A felicidade há-de se espalhar/ com toda a intensidade". Dizia eu: "Vão com esta mensagem bonita" (risos)
"Quando chego a Portugal sinto-me tão feliz. Chego a sentir-me mais feliz aqui do que no meu país."
E depois disso criou um laço para sempre com Portugal! Sim. Eu fiz muitos amigos. Portugal é muito forte dentro de mim por causa da minha educação. A minha mãe é descendente de português através do meu avô e bisavô. No Rio, eu e a minha família sempre vivemos em bairros em que as comunidades portuguesas eram muito grandes e o contacto com a cultura portuguesa era enorme. Eu vivi muito de perto a forma dos portugueses viverem. Às vezes quando ando aqui por Lisboa parece que estou lá numa rua do Andaraí, que é um bairro da zona norte onde eu morei e onde eu tive uma infância e uma juventude muito felizes. É engraçado porque quando eu viajei para Portugal em 1981 e cheguei a Lisboa disse logo: "Eu já estive aqui". Quando chego a Portugal sinto-me tão feliz. Chego a sentir-me mais feliz aqui do que no meu país.