Grândola, a "Vila Morena" de Zeca Afonso: de "Terra da Fraternidade" a coutada de milionários especuladores
Era terra de ninguém quando em 1971 o cantautor Zeca Afonso lhe dedicou uma canção. Hoje é o paraíso onde todos querem ter uma casa singela de paredes caídas de branco e telhados de colmo, para "brincarem aos pobrezinhos". A especulação imobiliária é tanta em Grândola que a câmara viu-se obrigada a suspender parte do PDM para travar o crescimento dos empreendimentos turísticos. Ali, o povo já não é "quem mais ordena".
Quando em outubro de 1971 o cantautor Zeca Afonso gravou, com a ajuda de José Mário Branco, em Hérouville, França, a canção 'Grândola, Vila Morena', para o álbum 'Cantigas de Maio', estava longe de imaginar que Portugal teríamos 50 anos depois. Na letra, o professor que nasceu em Aveiro, passou por Angola, estudou em Coimbra e escolheu a cidade de Setúbal para acabar os seus dias, dizia que Grândola é a "vila morena", acrescenta-lhe ser "terra da fraternidade" e sublinha que nela "o povo é quem mais ordena".
A canção acabou por ser a escolhida pelos capitães do Movimento das Forças Armadas (MFA) como a senha de confirmação da revolta militar. Para Zeca Afonso, a revolução fazia-se de utopias, de sonhos acordados e foi isso que sentiu no dia em que se inspirou para criar a letra de uma das suas músicas mais singelas e famosas, quando visitou a Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, em Grândola, no Alentejo. A vila era pobre, os terrenos baldios, era o Alentejo sem agricultura intensiva que ninguém queria.
Cinquenta anos depois tudo mudou. Se hoje Zeca Afonso escreve-se uma ode a Grândola, a letra seria bem diferente. Nem "em cada esquina" há "um amigo", nem "em cada rosto igualdade", muito menos é "terra da fraternidade". Com os anos, com um litoral cada vez mais apetecível para fins turísticos, Grândola acordou no meio de um pesadelo urbanístico, com empreendimentos turísticos, campos de golfe e casas milionárias a crescerem avulso como cogumelos selvagens.
E tudo ajudado com o facto de em 2017, a própria Câmara de Grândola ter decidido proceder a uma revisão do Plano Diretor Municipal (PDM) que fez brotar ainda sem maior controlo o número de camas turísticas, com valores muito acima do sustentável ou aconselhável. De Troia a Sines, passando pela Comporta e Melides, na apelidada Costa Azul, as elites nacionais e internacionais descobriram um grande pedaço de paraíso, semi-virgem, e ali se foram instalando, com as suas mansões chiques de arquitetura simples. E trouxeram mais e mais amigos ricos.
VAMOS BRINCAR "AOS POBREZINHOS"
Um artigo publicado na revista do semanário 'Expresso' em 2013 com o título de capa "Comporta, o refúgio hippie-chique" trazia entrevistas com várias figuras do social tradicional, que encontraram nesta zona a oportunidade de fugir às multidões. Muitas das declarações geraram polémica e ainda hoje são motivo de chacota. Entre considerações de moradoras que adiantavam que os mosquitos eram "os melhores amigos" da Comporta porque "afastavam certo tipo de pessoas", ficaram registadas para a posteridade as palavras de Cristina Toscano Rico, um dos elementos da família Espírito Santo, antiga dona da Comporta, que afirmava que ali se vivia "em estado mais puro" e que no fundo era "como brincar aos pobrezinhos."
A onda de indignação popular não tardou, o que fez com que Cristina Espírito Santo solicitasse ao 'Expresso' a publicação de um esclarecimento: "Em relação à frase que me foi atribuída na reportagem da revista do 'Expresso' (…) gostava de esclarecer que, não obstante considerar que se verificou um inapropriado e descontextualizado aproveitamento das minhas declarações, não posso deixar de admitir que fui infeliz na forma como me expressei. Não penso o que saiu publicado no 'Expresso', nem me revejo na síntese da declaração que lá vem feita. Por isso peço desculpa a todos a quem ofendi inadvertidamente. Lamento ainda pela polémica em que envolvi a minha família de forma escusada e involuntária."
A REVOLTA DOS"POBREZINHOS"
As declarações geraram tanta indignação – ou não fosse Grândola a terra com resquícios da letra de Zeca Afonso que anunciava ser ali que "o povo é quem mais ordena" – que, na altura, o Facebook se encheu de subscritores do movimento 'A Invasão dos Pobrezinhos à Comporta – Não há mosquito que nos pare', com um evento marcado para 10 de agosto desse ano, com mais de mil pessoas dispostas a deslocarem-se a esta zona privilegiada, ganhou força e aconteceu.
A ação foi pacífica, acabou em banhocas de mar e banhos de sol nas praias entre a praia da Comporta e a do Pêgo, mas os milionários continuaram por lá a matar mosquitos, a bronzear as cútis e a fazer festas privadas nas suas casinhas de férias. A FLASH! esteve por lá no verão de 2018, entrou em dois dos condomínios onde se "brinca aos pobrezinhos" e foi descobrir quem eram os milionários que passavam férias no último refúgio secreto dos ricos, onde entre 1989 e 1991 a família Espírito Santo tinha recuperado 13 mil hectares de terrenos, com o objetivo de desenvolver um projeto agroindustrial ligado ao arroz e à floresta, ao mesmo tempo que chamava amigos e outras figuras de renome. Rapidamente, a Comporta se transformou no destino de eleição de figuras importantes da finança, aristocracia e artes.
Quando lá fomos, já Cristina Espírito Santo tinha deixado de "brincar" sozinha "aos pobrezinhos", mas com chinelo de marca, e até já partilha os mosquitos com outros ricos a sério, naquele que já foi considerado como o destino mais exclusivo e selvagem da Europa. É que um ano depois das polémicas declarações de Cristina ao 'Expresso', o porta-aviões financeiro da família, o BES e o GES, levou um tiro certeiro que o atirou ao fundo, representando a maior falência bancária e empresarial dos tempos modernos em Portugal.
A INVASÃO DE GENTE RICA
Pela Comporta era possível cruzarmo-nos com o estilista francês Christophe Sauvat, o mentor da marca de roupa online La Redoute, que em 2007 assentou arraiais na zona e se inspirou na ambiência para refinar o seu estilo anti-batik, mas também com o chef de cozinha Ljubomir Stanisic, que no espaço Sublime, esteve à frente do Sem Porta (já não está). Em 2008, na peugada de Sauvat, começaram a chegar outros figurões internacionais, como Christian Louboutin, o mago dos sapatos que deixam as mulheres loucas por uma solas vermelhas, ou o super-designer mundial Philippe Starck, que desenha móveis e decora espaços como ninguém.
Ainda a cantora Madonna andava por Nova Iorque e longe de imaginar que ia descobrir o paraíso em Portugal e já a nobreza portuguesa, daquela com títulos nobiliárquicos ‘à séria’, se instalava na Comporta. A estrela maior nacional era Diana de Cadaval, a nossa duquesa luso-francesa mais bem cotada nas casas reais europeias, que casou e entretanto se divorciou do príncipe Charles-Philippe d'Orléans, e que também instalou uma "cabaninha" na Comporta, ‘maison’ onde recebia o melhor vizinho e amigo das mulheres, o sapateiro das estrelas, Christian Louboutin, que entretanto abriu na zona um hotel de charme chamado 'Vermelho', em Melides. A apresentadora Cristina Ferreira, da TVI, também não perde a oportunidade de por lá passar e levar a tiracolo o namorado João Monteiro.
AS CAVALGADAS DE MADONNA
Em maio de 2017, Madonna chegou de helicóptero à Comporta e o "Hamptons à portuguesa" ganhou novo fôlego. Cristiano Ronaldo já por lá tinha andado a cavalo na praia do Carvalhal quando namorava com a bela russa Irina Shayk. O mister José Mourinho e a família passearam ali a cavalo e a pé, mas de forma discreta. Por isso, quando a rainha da pop chegou ao areal de areias brancas já este não estava virgem dos passeios dos equídeos. Está na moda correr a cavalo nas praias da Comporta, mas Madonna deu-lhe outro significado. Comprou dois cavalos Puro Sangue Lusitano e deixou-os nas cavalariças da Cavalos na Areia. Quantas pessoas já montaram nos cavalos de Madonna e nem fazem ideia? Milhares.
Vá lá que Madonna resistiu à tentação de adquirir uma das casinhas de paredes caiadas e tetos de colmo, iguais àquelas onde os agricultores "pobrezinhos" da região viviam, quais galinheiros transformados em habitações de charme, e que agora serviam de modelo para casas de férias de condomínios privados de luxo, com portões trancados a código e praia praticamente privativa, de tão inacessível.
O clima de festa começou a desvanecer-se a partir de 2014, com o tombo do clã Espírito Santo. A PJ e o Ministério Público encontraram indícios de corrupção, tráfico de influências, recebimento indevido, falsificação de documentos e violação das regras de construção. Estimou-se que foram feitas mais de 100 obras ilegais, 74 sem qualquer licença ou autorização camarária. À auditoria demolidora não escapou sequer o príncipe Louis-Albert de Broglie, que chegou a propor comprar a herdade à massa falida do GES, e que teria erigido nos seus terrenos três construções alegadamente ilegais, mas aprovadas pela câmara, um imbróglio legal que deixou muita gente atrapalhada na autarquia, também ela debaixo de fogo da Justiça
A CHEGADA DOS AMORIM & CO.
Quando terra dos 'Donos Disto Tudo' mudou de mãos foi a família Amorim, liderada pela empresária Paula, quem tomou conta do quinhão Espírito Santo. A Amorim Luxury planeou criar um restaurante de luxo na praia do Pego, no Carvalhal, a Vanguard Properties constrói o projeto Dunas, com um brutal impacto na paisagem e o acesso à praia do Pego torna-se proibitivo, de tão difícil. Os milionários, na sua maioria franceses, não compram apenas os seus refúgios paradisíacos, compram privacidade e exclusividade e sistemas de segurança e a tecnologia que for necessária para manter o seu paraíso. Os detratores de tais investimentos no concelho de Grândola apontam para o consumo desenfreado dos cada vez mais escassos recursos hídricos, e de todos os impactos ambientais que trazem à região este ‘boom’ imobiliário, onde o betão substitui o verde, e as praias são "privatizadas"
Atores, membros de famílias reais europeias e jordanas investem em empreendimentos de luxo e a costa Azul começa um processo de degradação a olhos vistos. A fama de Grândola, que já pouco tem da Vila morena de Zeca Afonso, é tanta que nem a zona da Serra, onde o chef Ljubomir construiu o seu monte, escapa à fúria imobiliária. Centenas de sobreiros, espécie protegida em Portugal, são cortados nas barbas da autarquia com a GNR a ver, e nada acontece. A especulação imobiliária dispara por todo o concelho de Grândola.
Em Troia, que mudou radicalmente de paradigma nas últimas décadas, o luxo tornou esta península inacessível ao português médio. José Mourinho comprou ali uma casa, e uma série de estrelas de futebol seguiram-lhe o exemplo. O empreendimento mais recente que ali está a nascer está envolto em polémica. Sandra Ortega, a empresária mais rica de Espanha, filha do fundador da Zara, está a construir um resort de luxo, que se chama 'Na Praia'. A localização não engana. É mesmo em cima da praia, das dunas e da vegetação autóctone.
À BEIRA DO ESTOIRO ECOLÓGICO
A Câmara Municipal de Grândola, comunista por tradição, decidiu operar em 2017 uma revisão do Plano Diretor Municipal (PDM), com vista a repensar o ordenamento do seu território. Esta revisão não terá sido uma revisão, foi uma autêntica revolução, que fez disparar o número de empreendimentos turísticos nos 45 quilómetros de orla costeira. Das 40 unidades turísticas de luxo no concelho esse número passaria para 175. Em 2022, foi aprovada a suspensão parcial do PDM, com o objetivo de travar a especulação imobiliária e implementar regras mais apertadas para instalação de empreendimentos turísticos.
A canção de Zeca Afonso terminava com os versos "À sombra duma azinheira / Que já não sabia a idade / Jurei ter por companheira / Grândola a tua vontade!", mas hoje nem as sombras de azinheira estão a salvo, nem a vontade do povo é "quem mais ordena".