Lágrimas, morte e um grande amor. O passado traumático de Ljubomir Stanisic contado pela mulher e como juntos venceram medos e se tornaram "um só"
Desconforto, inquietude, ansiedade, medo. Mónica Franco, desafiou o marido, Ljubomir, a contar a história da sua vida. Durante dez anos , entre Portugal e Sarajevo, viveram um dos maiores desafios pessoais com a filmagem de 'Coração na Boca'. Uma prova de força e de resiliência e de um amor que vence tudo. É tudo isto que conta agora à The Mag.
Inspiradora e aterradora. A guerra transformada numa história de superação. Um caminho onde o barulho dos disparos e o cheiro do medo deixou marcas irreversíveis. Estas três frases poderão dizer muito sobre os 43 anos de vida de Ljubomir Stanisic que, sem medos, aceitou um dos maiores desafios da mulher, Mónica Franco: o de realizar um documentário onde, juntos, de regresso às raízes do polémico chef, reviveram uma infância marcada por sangue e batalhas.
O resultado está em 'Ljubomir Stanišic - Coração na Boca'. Um longa-metragem de 100 minutos que demorou 10 anos a estar concluído. Ljubo deu o avale a Mónica para ambarcarem nesta aventura que teve tanto de fascinante como de doloroso. A realizadora e mulher do chef relata, na primeira pessoa, tudo o que passaram juntos e como a história de amor de ambos sobreviveu a mais uma prova de fogo.
A ANSIEDADE DE VOLTAR A SARAJEVO
Mónica define a vontade do marido de abrir as portas da sua vida e da infância como um "ato de generosidade". Os dois decidiram fazer as malas e começar esta aventura exatamente na terra que viu Ljubomir Stanisic nascer: Sarajevo, na antiga Jugoslávia, e onde este nunca mais tinha voltado. Apesar da força e preservança que todos lhe conhecemos, o primeiro sintoma de fraqueza do chef ao longo deste projeto começou a manifestar-se uma semana antes de entrarem no avião.
"O Ljubomir não é uma pessoa de matutar muito nas coisas ou de ficar ansioso por nada. As coisas acontecem quando têm que acontecer. Uma semana antes de irmos para Sarajevo para começar a gravar, ele começou a não dormir. Foi a primeira vez que o vi assim na minha vida e ao longo deste anos que estamos juntos. Foi impossível não me sentir culpada por lhe estar a criar aquele estado de ansiedade", relata Mónica à The Mag.
"Uma semana antes de irmos para Sarajevo para começar a gravar, ele começou a não dormir. Foi a primeira vez que o vi assim na minha vida e ao longo deste anos que estamos juntos. Foi impossível não me sentir culpada"
Expectante com a forma como o marido ia encarar aquele regresso à cidade onde tanto sofreu, o coração começou por sossegar quando, juntos, decidiram andar pelas ruas desta cidade, atualmente Bósnia. "A cidade recebeu-o como uma verdadeira estrela nacional. Apesar do Ljubo nunca mais ter lá voltado, de não ter trabalho lá, todos se mostraram muito orgulhosos pelo trabalho que tem desenvolvido e pelo sucesso que alcançou. Foi recebido como um verdadeiro herói nacional."
REAVIVAR AS MEMÓRIAS ESQUECIDAS
Ao longo destes 100 minutos é desconstruída a imagem do homem duro. Vemos, pela primeira vez, um Ljubomir Stanisic frágil, que nem as lágrimas é capaz de conter. Um homem sem capas, que se deixa levar pelas recordações de cantos marcados pela guerra, pelo barulho das armas e onde a mulher o viu, vulnerável.
"É curioso que ele não se lembrava de quase nada. Inconscientemente, é como se tivesse apagado tudo da memória. Conforme íamos andando e visitando certos lugar, ele foi-se começando a relembrar. E aí sim, teve momentos muito dramáticos, mas outros também muito bonitos."
"Foi agonizante. Há traumas que estão dentro dele e que vão ficar para sempre. É impossível esquecer o sentimento de uma criança de 12 anos ter que pegar em armas e enfrentar um guerra"
As recordações começaram a vir ao de cima e Mónica viveu cada um destes, sem nunca deixar o marido. "Foi agonizante. Há traumas que estão dentro dele e que vão ficar para sempre. É impossível esquecer o sentimento de uma criança de 12 anos ter que pegar em armas e enfrentar uma guerra."
As "pazes" ficaram feitas depois de Ljubomir se ter sentado à mesa com um grupo de pessoas especial. "Juntou-se um grupo de diferentes etnias, religiões e fizeram uma purga juntos. As mágoas apagaram-se."
AMOR PASSA MAIS UMA PROVA DE FOGO
Para Mónica, este projeto passou por muitas "dores de crescimento" e o mesmo aconteceu com a relação de ambos durante a execução deste projeto. "Voltámos a crescer juntos, tanto a nível pessoal como profissional. Há muito que estamos juntos, tanto na união como nos negócios e sempre nos demos bem. Voltámos a desafiarmo-nos e provámos que somos mesmo uma equipa."
Nos momentos mais dolorosos, tiveram-se sempre um ao outro. "Temos uma coisa muito boa: picamo-nos muito um ao outro e isso é muito estimulante. Quando estou mais em baixo, ele pica-me e vice-versa." E explica: "Fazer este projeto foi conhecer o Ljubomir com outra profundidade".
"Temos uma coisa muito boa: picamo-nos muito um ao outro e isso é muito estimulante"
Admiradora nata de tudo o que o marido alcancou na vida, Mónica Franco tem com este documentário um único objetivo. "A força do trabalho pode-nos levar a todo o lado. Se pelo menos uma pessoa conseguir tirar deste nosso trabalho essa lição, sinto que o meu objetivo está alcançado. Que por mais desafios que tenhamos, deceções e dificuldades que passemos, se trabalharmos conseguimos tudo o que queremos."
OS ESFORÇOS FINANCEIROS E A VONTADE DE DESISTIR
Conseguir fazer uma longa-metragem era um dos maiores sonhos de Mónica Franco e este começou a ser desenvolvido há uma década. Durante este processo a realizadora passou por um turbilhão de sentimentos. "Foi um processo longo e muito intenso. Tive muitas angústias e achei mesmo que não ia conseguir terminá-lo."
Durante nove anos este foi um projeto pessoal financiado pela mulher do chef. "Financiei tudo. Ia adiantado as coisas conforme o dinheiro que tinha. Quando tinha um dinheiro extra, avançava mais um bocadinho. Foi duro. Deixava para último coisas que eram importantes para mim." Para trás ficaram muitos projetos. "Graças à SIC e à ajuda que tivemos no último ano consegui terminá-lo. Deixei para trás trabalhos que não consegui fazer mas há zero amarguras quanto a isso. Eu e o Ljubo temos muitas ideias para pôr em prática, falta-nos é tempo para tanta coisa."
Depois de mais de uma década a pensar neste seu "bebé", Mónica ainda se tenta mentalizar que este foi concluído com sucesso. "É muito estranho. O documentário estava sempre no meu inconsciente. Veio das minhas entranhas. Já há anos que tenho mais dois projetos na calha e agora é tempo de começar a pensar melhor neles."
Depois da estreia no Grande Auditório do Teatro Rivoli, no âmbito do Festival Porto /Post / Doc, esta peça documental deverá seguir para o circuito internacional de festivais de cinema.