O amor venceu. Toda a história de quando Gouveia e Melo foi herói nos fogos de Pedrógão, com a atual namorada na retaguarda
Associamos o nome do Almirante Gouveia e Melo ao sucesso da vacinação contra a Covid-19, mas, em 2017, ele já tinha sido herói a salvar vidas no gigantesco incêndio de Pedrógão Grande. Poucas pessoas deram por ele, mas, além de uma condecoração do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, o militar já contava com o apoio da namorada, Cristina Castanheta, que tinha um alto cargo no Ministério da Defesa.
Herói no mar. Herói a combater com vacinação a pandemia da Covid-19. Mas também herói em terra.
É verdade. O nome do agora Almirante Henrique Gouveia e Melo, o novo Chefe do Estado-Maior da Armada de 61 anos, passou despercebido em junho e julho de 2017, mas foi ele quem, com a sua equipa bem treinada com um total de 150 fuzileiros, pôs, durante um mês, ordem no caos e criou uma estrutura de apoio às populações, após o violento e destruidor incêndio de Pedrógão Grande.
Recorde-se que o desastre natural ocorrido no centro de Portugal lista entre os dez fogos mais mortíferos de sempre em todo o mundo, ceifando a vida a 66 pessoas.
No verão de 2017, quando a região centro do país se transformou, durante oito dias, num dramático braseiro, matando 66 pessoas, ferindo 253 e reduziu a cinzas quase 500 habitações, 50 empresas e destruindo milhares de hectares de mato e floresta e matando cabeças de gado, eis que um homem discreto, desconhecido ainda do grande público, foi chamado a intervir.
Do fundo os mares, literalmente, submergiu Henrique Gouveia e Melo, o comandante do submarino Barracuda.
A TRAGÉDIA QUE IA SENDO FATAL AO GOVERNO
Durante oito dias, com o sistema de comunicações utilizado pela proteção civil, o famoso e sempre polémico SIRESP (Sistema Integrado de Redes de Emergência e Segurança), inoperacional depois de parcialmente destruído pelo violento fogo, o incêndio de Pedrógão ameaçava queimar o que restava da credibilidade e reputação do primeiro Governo socialista de António Costa.
Recorde-se que, nessa semana da alta tensão política, o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa estava em brasa com os acontecimentos e com a incapacidade da então ministra da Administração Interna Constança Urbano de Sousa para gerir o desastre e chegou a afirmar que o Executivo devia pedir perdão às vítimas e também aos portugueses.
GOUVEIA E MELO, O "SUBMARINISTA DE PEDRÓGÃO"
À frente desse dispositivo militar esteve o então vice-almirante Henrique Gouveia e Melo, um militar com uma carreira de mais 15 anos ao comando de navios como o Vasco da Gama ou submarinos como o Barracuda e o Tridente, habituado a longas temporadas em operações no fundo dos mares, mas que agora se via na obrigação de percorrer montes e vales em busca de sobreviventes e levar apoio às vítimas do fogo.
Mas então por que raio aparece um militar habituado a águas profundas numa zona montanhosa em pleno centro do país? Há uma explicação. E é lógica. A Marinha enviara a Autoridade Marítima porque esta integra a Proteção Civil e por, em matéria de fogos florestais, ser quem comunicava com os aviões que combatiam as chamas nos reabastecimentos, fosse em barragens, fosse em cursos de água, como rios. O elemento líquido estava presente, mas Gouveia e Melo tinha agora trocado água salgada por água doce.
Além deste pequeno detalhe, Henrique Gouveia e Melo era também um reputado especialista em comunicações e guerra eletrónica, e urgia lidar com o falhanço que tinha sido o SIRESP, um sistema que pôs em causa a operacionalidade de bombeiros e emergência médica e envergonhou o papel do Estado em matéria de Segurança Nacional.
Nos meios castrenses, o então discreto vice-almirante, que com este incêndio mostrou capacidade de organização e destreza de liderança, ganhou a alcunha curiosa de 'submarinista de Pedrógão'.
Em janeiro de 2020, dois anos e meio depois do seu papel fundamental na gestão de crise de Pedrógão Grande, Henrique Gouveia e Melo é nomeado pelo ministro da Defesa João Gomes Cravinho como Adjunto para o Planeamento e Coordenação do Estado-Maior General das Forças Armadas, na dependência direta do CEMGFA, Almirante Silva Ribeiro.
Quase em simultâneo, integra o Núcleo de Apoio à Decisão (NAD) junto da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo e foi este cargo que lhe abriu as portas para ser o herói da vacinação, o líder da 'task force' contra a pandemia.
NAMORADA SEMPRE NA RETAGUARDA
Mas não se pense nele como um durão frio, incapaz de sentir ou de sofrer. No verão de 2021, quando foi chamado a depor em tribunal, no processo que envolve fraudes e desvios de fundos para a reconstrução das zonas ardidas, num julgamento que tem como mais mediático réu o ex-autarca de Pedrógão Valdemar Alves, Henrique Gouveia e Melo mostrou todas as suas fragilidades. "Ainda hoje sofro com o que vi e sou uma pessoa treinada", disse, emocionado, na sala de audiências da casa da justiça da Batalha.
Naquele fatídico junho de 2017, quando foi enviado em missão pelo Ministério da Defesa para o meio do inferno de chamas, havia, na retaguarda e na sombra, uma mulher, discretíssima, que se preocupava com ele. Era a sua atual namorada, a diplomata de carreira Maria Cristina Xavier Castanheta, quem desempenhava, desde finais de 2015, a função de Chefe de Gabinete do ex-secretário de Estado da Defesa Nacional, Marcos Perestrello, o número dois do ex-ministro José Azeredo Lopes, ambos exonerados em 2018 na sequência do trapalhão escândalo de roubo de armamento de Tancos.
Na sequência do seu esforço a liderar a equipa de fuzileiros no rescaldo, salvamento de vidas e bens, garantia da logística dos apoios e no arranque da reconstrução na região de Pedrógão, Marcelo Rebelo de Sousa condecorou-o com o grau de Comendador da Ordem Militar de Avis.
O SERVIDOR "AMADO E ODIADO"
Antigo porta-voz do gabinete do chefe de Estado-Maior da Armada, o então vice-almirante tinha o perfil de servidor da instituição militar, com as duas características essenciais a um operacional das Forças Armadas: 1 - Não questionar ordens. 2 - Executá-las de acordo com a decisão da hierarquia.
"É um homem que tem a noção do serviço público e de servir discretamente", dizia dele o Almirante Melo Gomes, então seu superior, em declarações ao jornal Público, descrevendo-o como "uma das melhores cabeças que a Marinha tem, não é vaidoso, é sempre discreto". "É amado e odiado na Marinha, quando entra é para pôr a casa em ordem", acrescentou.
Talvez por ser um militar que gosta de ter a casa em ordem, e as coisas operacionais, a Henrique Gouveia e Melo fez muita confusão a balbúrdia com que se deparou em terras de Pedrógão Grande, como fez questão de testemunhar em tribunal em 2021.
"A Câmara de Pedrógão Grande tinha uma estrutura muito débil para a dimensão do problema", disse, sublinhando ter ficado com a impressão de que "a Câmara Municipal eram meia dúzia de pessoas, se tanto. Estavam um bocado perdidos no meio daquele problema gravíssimo, muitos deles ainda em estado de choque."
OS TRABALHOS DO ALMIRANTE
Ainda na pele de testemunha, o Almirante elencou à justiça quais foram os trabalhos desenvolvidos pelos militares que comandara, realçando que havia "10 patrulhas móveis sempre a circular" que tinham como funções "distribuir comida, roupa, transportar pessoas e dar apoio psicológico."
Henrique Gouveia e Melo explicou ainda ao juiz que os seus operacionais fizeram um levantamento relativo às pessoas que tinham perdido bens, com "extensa reportagem fotográfica georreferenciada e entrevistas", que foi depois entregue ao município quando o destacamento saiu de Pedrógão Grande. O agora CEMA explicou, por outro lado, que se devia "conferir o mínimo de estrutura à Câmara para lidar com aquela emergência", o que foi feito através da criação de uma equipa "para responder às emergências mais urgentes", como água, roupa e comida.
A equipa foi instalada e estruturada pelos militares na Casa da Cultura, frisando o ex-comandante operacional que "nós não organizámos a reconstrução das casas, como é evidente. (…) O que eu transmiti foi que as habitações deviam ser reconstruídas, com prioridade, como é evidente, primeiro aquelas que tinham a ver com a pessoa ter um sítio para viver".
POPULAÇÃO FICOU ENTREGUE À SUA SORTE
Lembrando ter chegado a Pedrógão Grande já na fase terminal dos incêndios e revelando que os militares lá ficaram cerca de mais um mês, o oficial da Marinha recordou: "A população, depois daquele impacto do incêndio, quando os bombeiros saíram todos, ficou abandonada a si própria".
E acrescenta: "Quando saímos de lá ainda estávamos a meter lonas nos telhados das casas de pessoas que precisavam de um sítio para se abrigar", observou, aceitando descrever as incapacidades do autarca local, à data Valdemar Alves, face ao imprevisto: "Não diria que estaria em pânico, mas bastante desorientado face a uma situação que, desculpem a expressão, era areia demais para a camioneta que tinha naquele momento", rematou.