'
THE MAG - THE WEEKLY MAGAZINE BY FLASH!

Alô, Hollywood! A história impressionante da mulher que salvou o mundo da covid-19 sem recursos e sem reconhecimento

A cientista Katalin Karikó viu a sua vida mudar completamente nos últimos três anos com mais de 100 prémios, o mais recente o Nobel da Medicina. Mas por mais de 40 anos Kati trabalhou nas sombras da universidade.
Amarílis Borges
Amarílis Borges
12 de outubro de 2023 às 23:00
Katalin Karikó
Katalin Karikó
Katalin Karikó
Katalin Karikó e Drew Weissman
pub
Katalin Karikó e Drew Weissman
Katalin Karikó
Katalin Karikó
Katalin Karikó
Katalin Karikó e Drew Weissman
Katalin Karikó e Drew Weissman
Katalin Karikó

O percurso da bioquímica húngara Katalin Karikó é tão atribulado que é difícil pensar que os estúdios de Hollywood não estejam já a lutar pelos direitos da história para fazer um filme. No final de 2020, o nome de Kati, como ela gosta de ser chamada, saltou para as capas das mais conhecidas revistas internacionais, seguido da alcunha "mãe da vacina da covid" e na semana passada o seu telefone tocou para do outro lado alguém dizer que ela divide o Nobel da Medicina deste ano com o colega Drew Weissman.

Antes de todo o sucesso que começou a experimentar nos últimos três anos, Katalin, de 68 anos, passou mais de quatro décadas a trabalhar quase todos os dias, a partir das 6 horas da manhã e até altas horas da noite, com ordenados baixos, sem dinheiro para levar a filha em viagens nas férias de verão, e ainda a lutar por um espaço, de laboratório em laboratório, em nome de uma ideia que parecia ficção, como descreveu uma das suas amigas.

O grande interesse de Katalin pode ser traduzido assim: utilizar o ácido ribonucleico (ARN) para curar doenças e prevenir infeções. O ARN é o mensageiro responsável por entrar no núcleo das nossas células, retirar informações do nosso ADN e produzir todas as proteínas necessárias para viver, mas é frágil, e, nas tentativas da investigadora, causava reações graves nas células. Foi só em 2005 que Katalin e Drew Weissman encontraram modificações no ARN que permitiram criar a tecnologia para o desenvolvimento de vacinas seguras, em tempo recorde, sendo este último aspecto o que mais chamou atenção durante a pandemia da covid-19.

"Penso que ela devia receber os créditos por salvar o mundo", disse ao ‘Washington Post’ Jean Bennett, especialista em terapia genética para doenças da retina, que trabalhou ao lado de Katalin no início da carreira, na Universidade da Pensilvânia. As ideias dela eram "tão à frente do seu tempo, ela tinha dificuldades em convencer as pessoas de que realmente iam funcionar. Pareciam muito com ficção científica para as pessoas, e demasiado desafiadoras".

A forma como se movia no mundo académico também poderá ter criado dificuldades para Katalin, impedindo-a de receber financiamento. O neurocirurgião David Langer, famoso por dois documentários na Netflix (‘Lenox Hill’, de 2020, e ‘Emergency NYC’, de 2023) conheceu Katalin quando ele ainda era estudante e lembra-se da colega a levantar-se numa reunião do laboratório para fazer uma crítica aos dados apresentados por um professor com bons financiamentos. Ela foi convidada a não voltar, disse o médico ao ‘Washington Post’.

"Ela sabe que é brilhante e não tolera tolos", afirmou. "E a realidade da pesquisa americana, que continua até hoje, é que a busca por dinheiro está no topo da lista. Kati é o oposto, não faz nada por dinheiro. A realidade é que ela está a fazer a melhor ciência que pode e não tem nenhum conhecimento político sobre como navegar neste mundo."

A INFÂNCIA NUM TALHO

Katalin Karikó cresceu numa pequena cidade da Hungria, Kisújszállás, a cerca de 100 quilómetros de Budapeste, numa casa sem água quente nem eletricidade. Ajudava o pai num talho, tanto para apoiar a família como pelo seu interesse nos órgãos dos animais. A mãe era uma bibliotecária que fazia sabonetes, que ela também ajudava.

"Eu era uma miúda feliz. O meu pai era talhante e eu gostava de vê-lo trabalhar, observar as vísceras, o coração dos animais, talvez daí tenha vindo minha veia científica", contou Katalin numa entrevista ao ‘El Pais’. Na escola já se destacava como aluna, estudou Biologia na Hungria, conheceu o marido, Béla Francia, numa festa da universidade, ele tinha 17 anos, ela 22, notou o ‘Washington Post’. Depois de formar-se em 1978, começou as investigações sobre ARN, tendo escrito a tese de PhD quando estava grávida da única filha, Zsuzsanna "Susan" Francia – conhecida por ter sido duas vezes campeã olímpica de remo, representando os Estados Unidos.

A carregar o vídeo ...
Veja os primeiros portugueses a serem vacinados contra a covid-19

Em 1985, a família partiu para a Filadélfia sem data para voltar para a Hungria, escondendo cerca de mil dólares num peluche da menina. "Estive prestes a ir para Espanha com o grupo do Luis Carrasco, que se interessou pelo meu trabalho, também para França, mas a Hungria comunista dificultou muito as coisas", explicou

Nos Estados Unidos, a vida estava longe de ser fácil. Katalin falhou ao longo de quase todo o percurso académico ao tentar financiamento e ao tentar publicar os seus artigos em revistas de renome. O marido é quem arranjava os seus equipamentos de trabalho e armazenava frascos de picles para que ela usasse no laboratório. Katalin chegou a ser despromovida a professora assistente da Universidade da Pensilvânia, e aceitou manter-se assim porque queria dar continuidade à sua investigação.

"Nos últimos 40 anos não tive nenhuma recompensa pelo meu trabalho, nem sequer uma palmada nas costas. Não preciso. Sei o que faço, sei que isto era importante e sou demasiado velha para mudar", afirmou. Nos últimos três anos, ela e Drew Weissman receberam mais de 100 prémios. "Isto não me subiu a cabeça. Não uso joias e tenho o mesmo carro velho de sempre", afirmou.

UMA FOTOCÓPIA E UMA PARCERIA DE MILHÕES

Katalin e Drew Weissman conheceram-se no final dos anos 1990 na universidade, junto a uma fotocopiadora. Ele era imunologista e estava à procura de uma vacina para o VIH. Numa conversa, Katalin ofereceu-se para fazer o ARN mensageiro numa das experiências do colega. "É isso que estou a fazer. Sou boa nisso", afirmou.

Mas quando Drew fez o teste nas células imunológicas nas quais estava interessado, descobriu que o ARN mensageiro desencadeou uma resposta inflamatória. "Fiquei tão triste", contou Katalin ao ‘Washington Post’. "Como perdi isso?"

Foi preciso então resolver esse problema alterando apenas uma letra da sequência genética. "Essa mudança de uridina a pseudouridina permitia que não se criasse uma resposta imune exagerada e ainda facilitava a produção de proteína em grandes quantidades. Eu sabia que ia funcionar", explicou Katalin ao ‘El Pais’. E funcionou. A tecnologia tornou possível a criação das vacinas da ModeRNA e da BioNTech/Pfizer em 2021.

Mas mesmo depois de apresentarem respostas positivas, as conclusões dos dois cientistas passaram despercebidas por mais 15 anos. A patente que eles registaram foi vendida pela Universidade da Pensilvânia por apenas 300 mil dólares. "Queriam dinheiro rápido", disse a cientista.

Após décadas de contratos precários, Katalin foi afastada da Universidade da Pensilvânia em 2013 e acabou por reformar-se da vida académica, assumindo um cargo na direção do laboratório alemão BioNTech – que mais tarde foi comprado pela Pfizer – onde viu as suas pesquisas ganharem vida. Contudo, passava a maior parte do ano separada da família, que continuou nos EUA. Atualmente, Katalin continua a trabalhar como consultora daquele laboratório.

Antes, Katalin Karikó só era reconhecida nos círculos da filha, como a mãe da campeã olímpica Susan Francia. Agora a atleta enche o seu Instagram com fotografias das viagens da mãe, em que ela soma homenagens. "Estás no topo do mundo e só estou feliz por ser conhecida como a filha de Kati", escreveu Susan.

As promessas sobre os trabalhos à volta do ARN mensageiro são para o tratamento de várias doenças, incluindo alguns cancros, embora Katalin não queira dar esperanças sobre este assunto agora. Os resultados que ela já vê mais perto de terem sucesso são estes: "Antes da covid, a Moderna e a BioNTech já estavam a trabalhar numa vacina contra a gripe. Esta será provavelmente a próxima, juntamente com o vírus sincicial respiratório, que a Moderna está a desenvolver. Esta empresa também tem dois ensaios em curso de uma vacina contra o VIH e também contra o vírus Epstein-Barr, que poderá ser a causa da esclerose múltipla. Há também uma nova vacina experimental contra o nipah [um vírus transmitido por morcegos com taxas de mortalidade entre 40% e 75%]. É interessante que tanto a Moderna como a BioNTech anunciaram que estão a desenvolver vacinas de ARN contra o herpes zóster [zona]. Já existe uma, mas custa cerca de 800 euros. As vantagens das vacinas de ARN mensageiro é que são baratas e podem ser desenvolvidas muito rapidamente".

você vai gostar de...


Subscrever Subscreva a newsletter e receba diariamente todas as noticias de forma confortável