
Quando se formaram em 1983 tudo era (muito) diferente. Não era fácil comprar instrumentos, muito menos encontrar uma editora ou gravar um disco. Andar a tocar de um lado para o outro era penoso. As estradas eram más, as carrinhas não tinham ar condicionado e os músicos deslocavam-se atulhados em material e instrumentos. De lá para cá, percorreram o país várias vezes, de norte a sul, tantas que já é difícil contar, tiveram sempre presença assídua nas rádios, mesmo no período em que estiveram separados e dizem que uma em cada 25 pessoas em Portugal terá um discos dos Delfins. As restante 24 dificilmente não os conhecerão. As canções estão aí para serem celebradas como devem ser, ao vivo. A data está apontada para 6 de Abril de 2024.
O grupo fala de um "concerto de celebração" para "cantar os velhos temas" numa ponte entre o passado e o presente. "Se calhar vamos mostrar os Delfins a uma geração mais nova e reencontrar os velhos fãs do grupo que vêm de vários locais do país para cantarem connosco. Vai ser uma set list só de singles", garante Miguel Ângelo. "Ainda falta um ano mas está já muita coisa definida. Sabemos exatamente o que é vamos tocar, embora não seja fácil escolher as músicas. Temos repertório, só de singles, para fazer mais de três horas", vai avisando Fernando Cunha.
NOTA: Esta entrevista foi publicada originalmente em The Mag by FLASH! a 6 de julho de 2023
Quarenta anos de percurso, ainda que com um interregno pelo meio, não é para todos. Passou rápido?
Fernando Cunha - Parece que foi noutra vida que tudo isto começou. Nos últimos tempos temos andado a recordar alguns momentos e a compilar algumas fotografias e realmente olhando para trás, nós começámos mesmo muito cedo. O Miguel, por exemplo, tinha apenas 14 anos.
Miguel Ângelo - Para mim o que é incrível é o facto das canções dos Delfins terem resistido ao tempo. Nas principais rádios nacionais, as nossas canções passam mais de cem vezes por mês, especialmente o 'Sou Como Um Rio', 'A Baía de Cascais' a nossa versão da 'Canção do Engate', 'Um Lugar ao Sol', 'Aquele Inverno', 'O Saber Amar' ou 'Os Prisioneiros'. Eu acho que são canções que viraram clássicos-pop e acho que é isso que justifica a sua longevidade e que justifica agora um espetáculos dos 40 anos.
Qual a memória mais presente que têm do início do grupo?
Fernando Cunha - Bem, eu assim de repente lembro-me do momento em que fomos para estúdio gravar o nosso primeiro maxi-single para a Fundação Atlântica com produção do Pedro Ayres Magalhães e ainda não tínhamos nome para o grupo. O nosso nome anterior era 'Fanfarra', mas já não servia às novas canções mais pop que entretanto estávamos a fazer. Chegámos a ter uma lista de nomes que não agradavam a ninguém e foi então no intervalo das gravações, quando fomos comer uns croquetes (risos), que o meu irmão, que viria a ser o manager do grupo durante 25 anos, disparou: "Vocês deviam era chamar-se Delfins"
Miguel Ângelo... E o mais curioso é que ninguém sabe porquê (risos). Ninguém sabe porque é que ele disse aquilo. Saiu do ar (risos)
Fernando Cunha - A verdade é que soava bem, tipo 'The Beatles', neste caso 'Os Delfins'. E depois como éramos de Cascais, de perto do mar, as coisas começaram a fazer todo o sentido. Isso para mim foi um marco. Esse nome ficou para sempre como algo indissociável do grupo.
"Chegámos a ter uma lista de nomes que não agradavam a ninguém e foi então no intervalo das gravações, quando fomos comer uns croquetes (risos), que o meu irmão disparou: 'Vocês deviam era chamar-se Delfins'"
Mas é verdade que uns tempos depois chegaram a sugerir-vos mudar de nome?
Fernando Cunha - Sim. Isso foi depois de termos ido ao festival da canção e de termos ficado em último lugar. A nossa editora Fundação Atlântica tinha entretanto fechado, e nós tivemos de andar a bater às capelinhas e às portinhas todas. O que nos diziam é que até éramos fixes, mas tínhamos que mudar de nome, porque o nome de Delfins estava queimado. Mas nós não cedemos. Avançámos à nossa custa e fomos gravar as canções de 'Libertação'. Pedimos dinheiro emprestado às famílias, fomos para estúdio, gravámos em cinco dias e só depois é que a EMI Valentim de Carvalho assinou connosco.
Os Delfins começaram no circuito de bares como muitas bandas. Como foi esse período?
Miguel Ângelo - Foi um período em que tocávamos em locais com muito pouco espaço, com empregados a passarem à nossa frente com bandejas de cervejas, o que me obrigava muitas vezes a desviar o tripé do microfone para eles passarem. Lembro-me também que quando chegava a altura de receber o cachet, o responsável descontava as cervejas que tínhamos bebido e acabávamos a receber quase nada (risos). E lembro-me que era uma luta para tocarmos os nossos originais. Para convencermos o dono do bar lá fazíamos então uns covers dos Beatles e do António Variações.
Fernando Cunha - Lembro-me de um bar icónico no Porto que era o Aniki Bobó em que nós tocávamos numa espécie de andaime que estava montado por cima do bar. Lembro-me que aquilo abanava tudo e que nos deixava sempre a pensar quando é que vínhamos cá parar abaixo.
Miguel Ângelo - Lembro-me muito bem desses concertos, até porque, na altura, em Lisboa, nós não tínhamos muitos sitios para tocar. Não éramos muito bem vistos, porque éramos considerados os betinhos da linha. Então íamos para a Ribeira do Porto, que era muito mais hard core mas onde éramos muito bem recebidos. Fomos mais vezes tocar à Ribeira do Porto, do que, por exemplo, ao Bairro Alto, em Lisboa. Eu lembro-me de estar a tocar no Aniki Bobó, em cima dos tais andaimes, olhar cá para baixo e ver o Rui Reininho e o Jorge Romão, dos GNR ou o João Loureiro e a Ana Deus dos Ban. Havia um movimento incrível e nós tínhamos a sorte de poder tocar nesses sítios. Confesso que tenho algumas saudades dessa movida.
"Não éramos muito bem vistos, porque éramos considerados os betinhos da linha. Então íamos para a Ribeira do Porto, que era muito mais hard core mas onde éramos muito bem recebidos. (...) Eu lembro-me de estar a tocar no Aniki Bobó, em cima dos tais andaimes, olhar cá para baixo e ver o Rui Reininho e o Jorge Romão, dos GNR ou o João Loureiro e a Ana Deus dos Ban. Havia um movimento incrível e nós tínhamos a sorte de poder tocar nesses sítios"
Quando começaram até que ponto se aperceberam que estava a fervilhar o tão falado movimento do rock português?
Miguel Ângelo - Era difícil prever o futuro, mas percebia-se sim que havia um movimento que estava a despontar e que havia um grupo de pessoas que estava a trabalhar em conjunto, cada um nos seus grupos, para fazer nascer algo em Portugal e fazer nascer uma indústria de espetáculos. Um fazia luz, o outro aprendia a fazer o som, outro aprendia a ser manager e por aí fora, até porque não havia nada para trás. Todos trabalhavam para a mesma causa.
E quem começou no início dos anos 80 a fazer música teve mesmo que partir pedra!
Fernando Cunha - Completamente. Acho que fomos pioneiros em muitas coisas.
Miguel Ângelo - Só de lembrar as estradas!!! (risos). Eram mesmo horríveis, com a agravante de que nos deslocávamos em carrinhas alugadas sem ar condicionado. Ainda por cima tínhamos que levar o material todo connosco e íamos todos atafolhados. Saindo de Cascais, demorávamos mais de dez horas a chegar a Bragança. Mas éramos jovens e lá aguentávamos aquilo. Era uma aventura.
E os pais apoiavam essa aventura ?
Fernando Cunha - O Miguel teve mais sorte do que eu. A minha mãe até me apoiava, mas o meu pai, que era militar de carreira, queria era que eu fosse engenheiro. O mais engraçado é que ele depois começou a acompanhar os Delfins e tornou-se fã do grupo. A música que ele mais gostava era a 'Marcha dos Desalinhados', talvez por ser militar (risos).
Miguel Ângelo - Comigo foi mais tranquilo. O meu pai, quando eu ainda era bebé, decidiu passar de empresário a artista plástico e por isso tinha outra abertura. A minha mãe também gostava de música, gostava de cantar fado e só não seguiu carreira porque o meu avô, que era mais conservador, é que não a deixou. E depois, os meus pais viram que eu continuava a estudar (viria a tirar arquitectura) e perceberam que havia ali uma grande força de vontade e muito trabalho.
Ou seja, não havia volta a dar!
Miguel Ângelo - Sim. Ainda antes de sermos Delfins nós já ensaiávamos seis dias por semana. Juntávamos dinheiro para comprar instrumentos decentes para todos. Passávamos cheques pré-datados e pagávamos todos. O nosso espírito era muito de cooperativa.
E a amizade foi sempre fácil de manter?
Miguel Ângelo - Sim. Embora tenhamos decidido encerrar em 2009, todos nós nos continuámos a dar e até a tocar juntos. Sempre fomos amigos e essa era a premissa inicial. Posso dizer que em 2020 quando nos fizeram a proposta para fazermos o Rock In Rio, depois de nos verem nas Festas do Mar com a Sinfónica, nós combinámos um jantar num restaurante emblemático em Cascais, ao pé da baía, que é ‘O Pescador’ para ver se ainda nos dávamos bem (risos) e a coisa não podia ter corrido melhor.
Fernando Cunha - É preciso perceber que tivemos 25 anos muito intensos. Estávamos mais uns com os outros do que com as nossas famílias e isso acabou por resultar também num cansaço muito grande. Às tantas precisámos de experimentar coisas novas.
Há ali um período em 2000 em que os Delfins passaram de banda adorada, a ódio de estimação, algo que de certa maneira ainda perdura. Porque é que isso aconteceu e como é que lidaram com isso?
Miguel Ângelo - Houve uma altura em que os Delfins tiveram uma grande exposição (em 25 portugueses 1 tem um discos dos Delfins em casa). E é normal que nunca país pequeno aquilo tenha acontecido. Se fosse uma banda americana que tivesse um grande êxito na América, de dois em dois anos, fazíamos uma digressão mundial e não chateávamos os americanos. Só que aqui temos de estar sempre a tocar, até porque as nossas vidas, mais do que as vendas dos discos, depende dos espetáculos ao vivo. A isso juntaram-se algumas bocas de comediantes sobre os Delfins e aquilo foi como um rastilho. Mas olha, antes mal amados do que indiferentes. Para mim a indiferença é a pior das coisas.
"Antes mal amados do que indiferentes. Para mim a indiferença é a pior das coisas"
E ainda conseguem manter a essência daqueles putos que começaram a tocar numa garagem em Cascais?
Fernando Cunha - Claro, e eu acho que é isso que nos mantém aqui, esse gosto por tocar como se fôssemos uns miúdos.