
Numa altura em que o rock em Portugal ainda vestia maioritariamente de calças, três mulheres atreveram-se a furar aquele que, no início dos anos 80, ainda era um mundo de homens: Lena D’Água, dos Salada de Frutas, Adelaide Ferreira, que à data brilhava com o tema ‘Baby Suicida’ e Midus, cantora e instrumentista dos Roquivários. Nunca Portugal tinha visto até então um mulher no baixo e por isso Midus Guerreiro foi inovadora no seu tempo, uma pedrada no charco. "Ainda sugeriram que eu tocasse de saias, mas isso nunca viria a acontecer. Não tinha nada a ver", diz.
Os pais ainda a puseram no ballet, achando que era o "normal" para uma menina, mas aos dez anos compraram-lhe uma guitarra percebendo o seu interesse pela música. Num instrumento de seis cordas, no entanto, Midus só gostava de tocar nas quatro primeiras, atraída pelos sons mais graves. Tocava de ouvido e tudo o que escutava na rádio puxava-a para as linhas de baixo, desde Santana a Cream, passando por Deep Purple ou Creedence Clearwater Revival. Aos onze anos, teve a sua primeira banda, na igreja da Moita, tendo começado a tocar em bailes para angariar fundos para a paróquia. Na altura os restantes elementos do grupo já eram só rapazes. Foi quando viu e ouviu, no entanto, pela primeira vez Susy Quatro [cantora e baixista norte-americana] que Midus percebeu que afinal uma mulher também podia tocar baixo.
No início dos anos 80, a nova música portuguesa que começava a fervilhar em Portugal, despertava cada vez mais a atenção dos jovens e no liceu onde Midus estudava, em Almada, faltava-se muitas vezes às aulas para ficar a ouvir aqueles que apareciam de guitarra às costas para entreter os demais. Entre eles estava Jorge Loução que já andava com a ideia de formar uma banda. As amizades travaram-se e pouco depois nasciam os Rock & Varius [nome adotado por causa das várias sonoridades que misturavam], formados pelo trio Midus (então com 19 anos), Jorge Loução e um outro amigo, Mário Gramaço. Juntar-se-iam ainda Rabanal e Paulo Corval.
Sem grandes pretensões e apenas com a vontade de dar concertos, os Rock & Varius chamariam, quase de forma prematura, apenas com um ensaio, a atenção da Rádio Triunfo, editora que já tinha no seu catálogo nomes como UHF, Roxigénio, Beatnicks ou TNT e que também já tinha gravado artistas como Amália Rodrigues, Zeca Afonzo, Madalena Iglésias ou Carlos do Carmo. Mesmo antes de começarem a tocar ao vivo, os Rock & Varius viram-se de repente em estúdio a gravar um disco.
O primeiro álbum ('Pronto a Curtir', de 1981) foi gravado a correr, em apenas cinco dias, por imposição da editora, e só o segundo viria a ser feito com algum tempo e cabeça, 'Roquivários' , lançado em 1982 já sob a chancela da Valentim de Carvalho que, entretanto, já tinha pegado no grupo. Era nesse disco que se encontrava 'Cristina, Beleza é Fundamental', aquele que viria a ser o grande sucesso dos Roquivários [o nome começou entretanto a surgir escrito desta maneira]. Tocaram de norte a sul do país debaixo da loucura dos fãs, mas acabariam por ter uma vida curta, terminando pouco depois.
No final dos anjos 80, Midus decidiu rumar a Londres, para tentar a sua sorte num país onde a música que se fazia na Europa, tinha então o seu epicentro. Começou a trabalhar como baixista de sessão [música contratada], atividade que ainda hoje abraça e que lhe permitiu tocar com nomes como Anne Clarke, Melanie C (ex-Spice Girl), Tanita Tikaram, ou até a acompanhar Bryan Ferry. O sucesso que tem feito por lá, valeu-lhe no início dos anos 2000 um artigo na conceituada revista britânica 'Music Mart' com o título 'The Midus Touch' ['O toque de Midus], onde se lia que a portuguesa era um exemplo para futuros baixistas.
Nunca deixou de visitar Portugal, "sobretudo a família e os amigos músicos", como diz, sempre atenta ao que por cá se faz, mas nunca mais voltou. Agora, quarenta anos depois, lança um novo disco a solo, 'Minhas Canções, Meus Amigos', que tal como o próprio nome indica conta com as colaborações de velhos conhecidos nestas lides da música: Tim (Xutos & Pontapés), Anne Clark, Teresa Maiuko ou Dom Brown [que tocou com Duran Duran, Elton John ou Take That].
Há precisamente 40 anos os Roquivários andavam em alta, sobretudo graças ao tema 'Cristina, Beleza é fundamental'. Que memória tem daquele período?É uma memória do tamanho de uma bola de neve gigante. Há tanta coisa para lembrar dos Roquivários, desde os concertos às viagens, mas talvez a primeira grande lembrança que tenho seja de estúdio, porque éramos completamente inexperientes quando fomos gravar pela primeira vez. Éramos apenas um grupo de amigos que queria dar concertos. Às vezes, acho que tinha sido melhor se tivéssemos gravado já com alguma rodagem... mas enfim foi o que foi.
E que histórias são essas que ficam para contar?Epá! tantas! Olha! lembro-me que uma vez saímos de Murça à noite para, no dia seguinte, estarmos a tocar em Lisboa, mas antes de partir cada um de nós comprou um garrafão de cinco litros de vinho do Porto caseiro para vir a beber na viagem. A meio do caminho tivemos de parar para descansar e demos com uma pensão, no meio do nada, tão assustadora que acabámos todos a dormir no mesmo quarto, tal era o medo. Acho que aquela foi uma das viagens mais bizarras que tivemos.
Mas numa altura em que as condições para tocar, não eram as que existem hoje, vocês devem ter vivido situações bem insólitas?É engraçado porque, apesar da nossa inexperiência, havia coisas que tínhamos bem cientes. Por exemplo, quem estava por detrás do nosso manager era eu. Ou seja, connosco nunca aconteceram, por exemplo, aquelas situações de tocar em cima de atrelados ou fardos de palha, porque não aceitávamos. Houve também muitos episódios que ouvíamos de promotores de concertos que fugiam com o dinheiro e não pagavam às bandas e isso também nunca permitimos que acontecesse connosco.
"Eu usava uma caixinha no meu cinto, uma caixa militar das forças armadas que tinha comprado na feira da ladra, e era nela que guardava o cachet."
E como é que faziam para assegurar os pagamentos?Era fácil. Não subíamos para o palco sem o dinheiro na mão (risos). Eu usava uma caixinha no meu cinto, uma caixa militar das forças armadas que tinha comprado na feira da ladra, e era nela que guardava o cachet. Já cheques só aceitávamos por parte das câmaras. Por isso nunca tivemos más experiências nesse sentido.
Naquele início dos anos 80, os Roquivários geraram uma onda de culto à sua volta. Como era ser uma rock star naquela altura?Eu acho que nunca me apercebi de nada disso. Curiosamente, em 2019, quando fui a Portugal tocar ao Sol da Caparica [a convite do Tim dos Xutos & Pontapés], encontrei um amigo músico, o Filipe, que andou a tocar teclas connosco durante algum tempo, que me disse que nunca mais tinha voltado a estar numa banda como a nossa. Ele disse-me que até lhe tentavam arrancar os cabelos. Eu nunca me apercebi de nada.
Como era ser uma mulher roqueira num mundo de homens? Sentiu algum tipo de estranheza ou preconceito?Eu tinha a noção que não existiam outras mulheres a fazer rock para além de mim, da Lena D'Água e da Adelaide Ferreira, mas como quando comecei a aparecer em palco, com os meus onze anos nos bailes para angariar fundos para a Igreja, já era a única menina, aquilo foi sendo muito normal para mim. É curioso que já encontrei pessoas que me dizem que se recordam daqueles concertos. Dizem-me que era o delírio ao verem uma miúda a tocar baixo. Os rapazes passavam-se e tiravam as camisas e tudo (risos). Houve um concerto na Sociedade do Gaio, ao lado da Moita, que meteu tanta gente que até houve pessoas a desmaiar com o calor. E isso foi muito falado na altura.
E porque é que os Roquivários duraram tão pouco tempo?Porque como eu e Jorge éramos namorados, quando acabou o namoro, acabou também a banda. Foi tudo por água abaixo. Recordo-me que terminámos a relação em janeiro [1983], mas como tínhamos concertos marcados até Outubro, tivemos de fazê-los debaixo de um ambiente que não era o melhor e que já tinha algumas divisões. Mas conseguimos cumprir os contratos.
"Eu e Jorge éramos namorados, quando acabou o namoro, acabou também a banda".
[sobre o fim dos Roquivários]
O tema 'Cristina, Beleza é Fundamental' ficou-vos colado à pele até hoje. Recorda-se como nasceu essa canção?Claro que recordo. Lembro-me que no início não gostei nada (risos). Mas depois lá arranjei uma maneira de cantar aquilo que não fosse com a intenção com que tinha sido feita. Eu disse para mim mesma que só cantaria se conseguisse acreditar que a canção se referia à beleza interior e não à beleza exterior. Era isso que eu dizia nas entrevistas que nós fazíamos na altura.
Mas quem era a Cristina?Era uma namorada do Gramaço (risos). Por isso é que eu não gostei da música. Porque ela era boa miúda e até era bem gira.
Depois dos Roquivários terminarem nunca mais voltou a cantar esta música?Cantei. Um dia o Herman José convidou-me para ir ao 'Parabéns'. E lá fui eu cantar o 'Cristina' com orquestra e tudo.
"A 'Cristina' era uma namorada do Gramaço (risos). Por isso é que eu não gostei da música. Porque ela era boa miúda e até era bem gira. "
Quando no final dos anos 80 decidiu ir para Londres, era porque achava que Portugal já era pequeno para si?Não. Quando fui para Londres foi com a ideia de ir atrás do Luís Jardim [produtor português] para gravar um disco. Claro que Londres era um sonho para mim e achei que aquela era boa oportunidade. E lá fui apenas com dois contactos, o do Luis Jardim e o do Luis Pimentel que tinha andado a tocar com os Wham.
É verdade que foi pedir borlas à TAP para as viagens?Sim (risos). Quem tem boca vai a Roma. Marquei uma reunião com eles, disse-lhes o que precisava e em troca colocava o nome da TAP no disco que ia fazer. E eles deram-me seis viagens de ida e volta. E fiz o mesmo com uma agência de viagens, Viagens Nascimento, que me possibilitou hotel para todas as minhas idas e voltas.
E depois do Luís Jardim, o que se seguiu em Londres?Depois do Luís Jardim, comecei a fazer audições para várias bandas originais e a seguir descobri as agências através de muitas Jam Sessions. Eu ia a todas e tocava em todo o lado, até o meu nome começar a circular. Fiquei em três agências que começaram então a arranjar-me audições. A primeira foi para a Anne Clark. A coisa correu tão bem que acabei a entrar para a banda dela, onde fiquei durante dez anos. Em 1996 fiz audição para a Mel C e fiquei então a tocar com ela.
E tocou com o Bryan Ferry!Sim, fiz três espetáculos com ele na Alemanha. Foi o baterista dos Beautiful South que me conhecia e que sugeriu o meu nome. Estive com ele durante uma digressão que durou dez dias numa banda, curiosamente, só de raparigas.
Conseguiu alcançar em Londres aquilo que esperava alcançar?Eu quando cheguei a Londres nem nunca pensei em ser música de sessão. As coisas foram acontecendo. Hoje acho que atingi um patamar que me deixa muito satisfeita. Sinto-me realizada.
A Midus regressa agora com um novo disco. Há quantos anos não gravava?A última vez que gravei foi o 'Amazónia' para Portugal, e julgo que é de 1988.
Mas desde então nunca mais gravou porquê?Eu fui sempre escrevendo e cheguei a ter várias reuniões na Polygram com o Tozé Brito. Mas depois mostrava os meus temas e achava sempre que nunca agradava. Chegou uma altura em que deixei de mostrar aquilo que fazia. E fui ficando por Londres, a gravar com outras bandas.
Mas a solo, em nome próprio, nunca lançou nada em Londres?Não. Entrei neste circuito do músico de sessão e estou bem assim (risos). Claro que nunca desisti de lançar alguma coisa em nome próprio, e por isso sempre fui escrevendo e guardando à espera que chegasse o dia. Entretanto, veio a pandemia e acabou por me ajudar. Três temas já estavam feitos há mais tempo, mas quase todos eles escrevi ao longo dos últimos três/quatro anos. A pandemia deu para as pessoas olharem mais para si próprias. Eu por exemplo, até tirei um curso de nutricionista.
E como é que foram estes dois anos de pandemia, sabendo que o setor da cultura foi um dos mais afetados em todo o mundo?Eu fiquei em casa como toda a gente. Tinha algumas poupanças que me valeram, mas aqui em Inglaterra tivemos uma boa ajuda do governo, sobretudo os músicos que descontaram. Na verdade, como tenho um estúdio em casa, passei o tempo a trabalhar e a gravar. Graças à internet fiz muitas coisas à distância.
E como ficou o nutricionismo?O curso está concluído. Tenho dois diplomas e tudo, mas ainda não comecei a trabalhar nessa área. E depois esta coisa do disco, também acabou por me levar o tempo todo.
Apesar de viver em Londres há muitos anos, nunca perdeu o contacto com Portugal e com os músicos portugueses? Não. Eu vou a Portugal vária vezes por ano. Em 2019 como disse toquei no festival Sol da Caparica a convite do Tim. Acho mesmo que foi a primeira vez que alguém em Portugal me convidou para algo do género. E adorei.
"Eu tenho as minhas bandas preferidas, gosto muito dos The Gift e Amor Electro, por exemplo"
Com quem é que mantêm maior contacto em Portugal'É com os meus amigos músicos e a minha família. E estou sempre em contacto a ver o que é que sai de novo e que novas bandas andam por aí. Só no final dos anos 90, inicio de 2000 é que andava tão ocupada em Londres, que não conseguia dar atenção a mais nada.
E o que mais gostas do que se faz agora em Portugal?Eu tenho as minhas bandas preferidas, gosto muito dos The Gift e Amor Electro, por exemplo. Espero que estes últimos voltem outra vez. Há uns anos vim a Portugal a uma entrega de prémios no Tivoli, sentei-me e vi uma rapariga a cantar, acompanhada ao piano. Adorei a sua voz e perguntei logo a quem estava ao pé de mim quem era. Era a Sónia Tavares e foi assim que descobri os The Gift.
Acha que o grande público em Portugal ainda se lembra da Midus?Não sei (risos). Mas é engraçado que às vezes quando vou a Portugal, há pessoas que me reconhecem. Eu tinha um sinal na cara que entretanto tirei e que as pessoas olhavam e diziam: "É ela é!". Mas é perfeitamente natural que o público mais novo não saiba quem eu sou.
E para quando concertos em Portugal?Vamos ver o que acontece com este disco. Espero que desperte o interesse dos promotores e que surjam convites para tocar.