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Mulheres que (literalmente) constroem: as histórias das que trocaram a vida "limpinha" pelas obras

Quando se fala em desigualdade de género em Portugal, nenhum outro setor tem números tão sombrios quanto o da construção. Mas há mulheres a desbravar caminhos. The Mag foi conhecê-las!
Amarílis Borges
Amarílis Borges
07 de março de 2024 às 22:16
Mulheres no setor da construção
Mulheres no setor da construção Foto: Medialivre

A atividade económica que "envolve mais elementos do sexo masculino é a ‘construção’ (91,1%). Quanto às mulheres, é nas ‘outras atividades de serviços’ que estão mais representadas". A conclusão é do Instituto Nacional de Estatística (INE) no relatório definitivo dos Censos de 2021 realizados em Portugal e o resultado não surpreende. As obras são maioritariamente ocupadas por homens, toda gente sabe isso, mas será que a tendência é continuar a ser assim? 

São cerca de 7 horas da manhã e duas mulheres de 35 anos preparam-se para começar um dia de trabalho, uma em Lisboa e outra nas Caldas da Rainha, ambas preocupadas com os equipamentos de proteção e as ferramentas.

"Preparo as minhas roupas, almoço, lanche, faço tudo no dia anterior. Tenho roupas específicas para determinados trabalhos, sou metódica nesta questão. No dia do trabalho, só confirmo tudo e saio", descreveu Lenara Serrato numa entrevista por email à ‘The Mag/FLASH!’.

Lenara Serrato
Lenara Serrato Foto: DR

"Acordo cedo, por volta das 7 horas, porque preciso de ir com calma para me centrar nas tarefas que tenho pela frente. Depois do café, trato da minha rotina de skincare, com muito protetor solar sempre, e vou geralmente verificar a lista de material que preciso de levar - a mala fica feita de véspera, mas sinto-me sempre mais confortável com a dupla verificação. Tenho particular cuidado com a roupa e os equipamentos de proteção pessoal, porque como acabo por ter muitas tarefas diferentes, as exigências também o são", contou Íris Mira, fundadora da empresa SheDoes.

Íris Mira
Íris Mira Foto: DR

As duas integram o pequeno grupo de mulheres que trabalham nas obras em Portugal, mais especificamente elas fazem o trabalho pesado, as pinturas, as remodelações, são "orgulhosamente ‘faz-tudo’", como definiu Íris. São uma minoria num universo já pequeno, em que é mais fácil encontrar mulheres a trabalhar na direção da obra, na segurança e fiscalização. Chegaram ao setor numa altura em que só se fala na falta de trabalhadores e depois de terem passado por outras áreas.

"A primeira memória que tenho de querer ‘ser’ alguma coisa é dizer que queria ser engenheira civil, provavelmente influenciada pelos comentários da família porque passava o tempo a construir lego e a empilhar e desmontar coisas. Entretanto, achei que a minha carreira passaria pela medicina veterinária, mas acabei por me tornar tradutora, profissão que desempenhei nos últimos 10 anos", afirmou Íris. Para ela, o "lugar feliz é no meio da serradura, do pó e das ferramentas", influenciada pelo pai, que foi mestre marceneiro. "Desencantada com a tradução, e na sequência das profundas alterações do mercado com o advento da inteligência artificial, decidi que era hora de ouvir os conselhos dos amigos e da família e lançar-me neste meio, aos 34 anos".

E agora, à frente da sua empresa, faz "pinturas e decoração de paredes, pequenas reparações elétricas, de canalização, de estruturas, montagem e transformação de móveis, um pouco de paisagismo e também trabalhos com gesso cartonado (vulgo pladur)".

Para Lenara, o gosto por construir também começou na casa da família, no Brasil, mas só em Portugal, durante a pandemia da covid-19, fez disso uma profissão. "Cresci entre o atelier de bonecos, marionetas e outras artes da minha mãe e a oficina de arranjo e restauro de barcos do meu pai", afirmou. "Ao terminar a escola, fiz licenciatura em Biomedicina e me especializei em Hematologia e Hemoterapia, trabalhando em bancos de sangue dentro de hospitais durante sete anos. Quando me vi farta e frustrada com as injustiças da área da saúde, comecei a cultivar e vender plantas além de trabalhar com jardinagem e paisagismo de forma independente durante cinco anos, antes de vir morar em Portugal, em 2019. Desde 2020 trabalho de forma ativa e independente com remodelações e pinturas de casas e apartamentos, e possuo um atelier de restauro de móveis e antiguidades, além de design e fabrico de diferentes peças em madeira". Nestes quase quatro anos, Lenara conseguiu projetos em que trabalha sozinha nas Caldas da Rainha e outros em que trabalha em equipa, em Lisboa.

A arquiteta Mariana Costa, autora do projeto Salto na Obra, uma rede de entreajuda de trabalhadoras desta área, explicou à ‘The Mag/FLASH!’ que o homem vai trabalhar na construção quando não tem outras opções, a mulher quando resolve trabalhar na construção civil é por opção. "Logo isso já traz o diferencial na relação com o trabalho. Existem diversas situações que levam a mulher a trabalhar neste setor, mas em Portugal as situações que eu tenho visto acontecem por estas mulheres terem relação familiar com quem trabalha nas obras, seja o pai, o marido. Esta vivência acaba por apresentar uma realidade concreta para desenvolver um trabalho mais dinâmico, que elas já conhecem." 

Mariana Costa
Mariana Costa Foto: DR

Do lado da clientela, ter uma trabalhadora mulher em casa parece causar primeiro "curiosidade", disse a arquiteta. "Mas depois, fruto de um trabalho bem feito, as pessoas aprovam e indicam. E nada melhor do que uma boa indicação para demonstrar a satisfação com o trabalho realizado".

"A maioria das minhas clientes acaba por referir, espontaneamente, que ter uma mulher em casa a tratar do que precisa de ser feito é muito mais confortável, porque inevitavelmente acaba por se criar uma dinâmica mais relaxada. Outra coisa engraçada que acaba por acontecer é que ficam comigo enquanto eu trabalho e demonstram genuína curiosidade em aprender e perceber mais sobre o assunto - várias já me lançaram o desafio de criar workshops no género ‘kit básico de sobrevivência’, que planeio explorar mais para o final deste ano", explicou Íris.

ONDE ESTÃO AS DESIGUALDADES

Uma consultora britânica revelou esta semana, à margem do evento internacional da semana da mulher na construção, os dados mais recentes sobre o setor no Reino Unido. As mulheres representam em 2024 15% da força de trabalho do setor, com 340 mil pessoas atualmente empregadas. Mas um dos dados que mais chamam atenção é que 37% dos novos trabalhadores da construção no Reino Unido são mulheres. 

Em Portugal, o número total de trabalhadores empregados não está longe dos valores do Reino Unido. Em 2023, o nosso País registou o valor mais alto da última década, com 325 mil pessoas empregadas, noticiou o ‘Diário de Notícias’. No entanto, estes números não revelaram a percentagem de mulheres. 

A expectativa é que haja uma tendência de crescimento das mulheres neste setor – que há anos precisa de milhares de trabalhadores. Mas ainda há muitos aspetos a serem tratados.

"Não é propriamente surpreendente, mas há sempre que lidar com o preconceito que é gigantesco. No meu caso, refiro-me essencialmente aos serviços e lojas satélites: por exemplo, o ano passado, ainda antes de me ter lançado nesta nova aventura, precisei de comprar um martelo demolidor para um projeto que tinha em minha casa. O funcionário de uma grande superfície da especialidade (onde devo dizer, sou muitíssimo bem tratada 95% das vezes) decidiu que eu não precisava daquela máquina, porque era um disparate alguém com a minha constituição física fazer aquilo. Felizmente, numa loja de comércio local, o atendimento foi diametralmente diferente e lá comprei a ferramenta que me fazia falta. De notar que essa mesma loja mais pequena é a única onde, até hoje, já vi por exemplo calçado de trabalho especificamente feminino. É relativamente normal que me passem - passo a expressão - atestados de incompetência só por ser mulher, mesmo que eu chegue com um discurso perfeitamente coerente e saiba exatamente o que quero ou preciso", comentou Íris. 

"Eu poderia dissertar sobre isso por linhas e linhas", disse Lenara. "Desde o facto de termos que escolher a roupa com a qual vamos sair de casa, a roupa com a qual vamos trabalhar, a subestimação permanente das competências, capacidades e da força de uma mulher, os assédios morais e físicos, os olhares invasivos, a dificuldade de ir à casa de banho principalmente durante o período pois muitas obras nem têm uma casa de banho disponível, e quando há, a maioria dos homens não possui o mínimo de higiene ao usá-la. Além das mulheres que têm filhos e/ou são chefes de família: onde deixam as crianças? Quem cuidará? Quem levará e buscará na escola? E uma série de questões que culturalmente acabam caindo como responsabilidade das mulheres além do trabalho fora de casa".

"Como arquiteta, já sofri preconceito pois o cliente que me tinha contratado para desenvolver o projeto tirava dúvidas com o empreiteiro", contou também Mariana. "Ainda bem que eu tinha um ótimo parceiro profissional, que só dizia ‘fale com a arquiteta, ela é quem sabe’. Para mim, esta abordagem é nítida de um pensamento onde os homens, muitas vezes, não ouvem o que as profissionais mulheres têm a dizer". 

Mariana deu sugestões para responder à entrada das mulheres na construção. "É necessário criar programas de formação e ter empresas preparadas para receber esta mão-de-obra. Um estudo realizado anos atrás percebeu, por exemplo, que não existiam sequer vestiários para mulheres nas obras. Poucas são as marcas com roupas técnicas e muitas ferramentas são desenhadas para mãos masculinas. Um contraste quando observamos que muitos programas de DIY [do it yourself] têm mulheres à frente".

E POR FALAR EM IGUALDADE... SALARIAL

De forma geral, as diferenças dos rendimentos entre homens e mulheres em Portugal ainda são significativas. De acordo com o Instituto Europeu para a Igualdade de Género, o nosso País melhorou ligeiramente, mas mantém-se abaixo da média europeia, ocupando o 15.º lugar na lista. Os homens ganham mais 17% do que as mulheres para exercerem as mesmas funções, e ainda há grande desigualdade no acesso das mulheres a cargos de poder. No caso da construção, a presença das mulheres no setor ainda não permite dar dados concretos sobre igualdade de género. 

Censos 2021
Censos 2021 Foto: DR

Mas, a título de exemplo, os Censos dos Estados Unidos mostraram em fevereiro deste ano que, apesar de haver desigualdade de género na construção no país, as diferenças salariais entre homens e mulheres neste setor são inferiores às diferenças em outros setores de atividade – na construção, os homens norte-americanos levam para casa mais 3,6% de rendimento em comparação com as mulheres; nos outros setores os homens levam em média mais 18%. 

No Luxemburgo, o único setor em que as mulheres ganham mais do que os homens é a construção, uma realidade desde 2015, noticiou o site ‘Contato’, justificando a diferença com os cargos ocupados pelas mulheres, na maior parte posições de chefia. 

No que depender de Íris e Lenara, parece que não haverá espaço para remunerações inferiores. "No meu caso pessoal, não creio que isso seja um fator. Eu cobro tanto quanto um homem - talento, não género. Mesma tarefa, mesmo pagamento", afirmou a diretora da SheDoes. "É urgente uma transformação na educação básica, além da criação de políticas públicas voltadas à igualdade de género", apelou Lenara.

"Se a mulher trabalhar de modo individual ou empreender neste setor, poderá ter mais liberdade e autonomia salarial", ressaltou Mariana. "Elas têm é que saber como 'precificar' corretamente, sem cair no erro do cobrar pouco e se desvalorizar. Com capacitação e autoconfiança, o trabalho realizado será de qualidade". E o mercado está a pedir isso. "Para que haja crescimento do setor, haverá mais necessidade de trabalhadores, com mais e melhores oportunidades. Não será isso por si só um bom motivo para as mulheres olharem com um outro olhar para a construção civil?"

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