
A atividade económica que "envolve mais elementos do sexo masculino é a ‘construção’ (91,1%). Quanto às mulheres, é nas ‘outras atividades de serviços’ que estão mais representadas". A conclusão é do Instituto Nacional de Estatística (INE) no relatório definitivo dos Censos de 2021 realizados em Portugal e o resultado não surpreende. As obras são maioritariamente ocupadas por homens, toda gente sabe isso, mas será que a tendência é continuar a ser assim?
São cerca de 7 horas da manhã e duas mulheres de 35 anos preparam-se para começar um dia de trabalho, uma em Lisboa e outra nas Caldas da Rainha, ambas preocupadas com os equipamentos de proteção e as ferramentas.
"Preparo as minhas roupas, almoço, lanche, faço tudo no dia anterior. Tenho roupas específicas para determinados trabalhos, sou metódica nesta questão. No dia do trabalho, só confirmo tudo e saio", descreveu Lenara Serrato numa entrevista por email à ‘The Mag/FLASH!’.
"Acordo cedo, por volta das 7 horas, porque preciso de ir com calma para me centrar nas tarefas que tenho pela frente. Depois do café, trato da minha rotina de skincare, com muito protetor solar sempre, e vou geralmente verificar a lista de material que preciso de levar - a mala fica feita de véspera, mas sinto-me sempre mais confortável com a dupla verificação. Tenho particular cuidado com a roupa e os equipamentos de proteção pessoal, porque como acabo por ter muitas tarefas diferentes, as exigências também o são", contou Íris Mira, fundadora da empresa SheDoes.
As duas integram o pequeno grupo de mulheres que trabalham nas obras em Portugal, mais especificamente elas fazem o trabalho pesado, as pinturas, as remodelações, são "orgulhosamente ‘faz-tudo’", como definiu Íris. São uma minoria num universo já pequeno, em que é mais fácil encontrar mulheres a trabalhar na direção da obra, na segurança e fiscalização. Chegaram ao setor numa altura em que só se fala na falta de trabalhadores e depois de terem passado por outras áreas.
"A primeira memória que tenho de querer ‘ser’ alguma coisa é dizer que queria ser engenheira civil, provavelmente influenciada pelos comentários da família porque passava o tempo a construir lego e a empilhar e desmontar coisas. Entretanto, achei que a minha carreira passaria pela medicina veterinária, mas acabei por me tornar tradutora, profissão que desempenhei nos últimos 10 anos", afirmou Íris. Para ela, o "lugar feliz é no meio da serradura, do pó e das ferramentas", influenciada pelo pai, que foi mestre marceneiro. "Desencantada com a tradução, e na sequência das profundas alterações do mercado com o advento da inteligência artificial, decidi que era hora de ouvir os conselhos dos amigos e da família e lançar-me neste meio, aos 34 anos".
E agora, à frente da sua empresa, faz "pinturas e decoração de paredes, pequenas reparações elétricas, de canalização, de estruturas, montagem e transformação de móveis, um pouco de paisagismo e também trabalhos com gesso cartonado (vulgo pladur)".
Para Lenara, o gosto por construir também começou na casa da família, no Brasil, mas só em Portugal, durante a pandemia da covid-19, fez disso uma profissão. "Cresci entre o atelier de bonecos, marionetas e outras artes da minha mãe e a oficina de arranjo e restauro de barcos do meu pai", afirmou. "Ao terminar a escola, fiz licenciatura em Biomedicina e me especializei em Hematologia e Hemoterapia, trabalhando em bancos de sangue dentro de hospitais durante sete anos. Quando me vi farta e frustrada com as injustiças da área da saúde, comecei a cultivar e vender plantas além de trabalhar com jardinagem e paisagismo de forma independente durante cinco anos, antes de vir morar em Portugal, em 2019. Desde 2020 trabalho de forma ativa e independente com remodelações e pinturas de casas e apartamentos, e possuo um atelier de restauro de móveis e antiguidades, além de design e fabrico de diferentes peças em madeira". Nestes quase quatro anos, Lenara conseguiu projetos em que trabalha sozinha nas Caldas da Rainha e outros em que trabalha em equipa, em Lisboa.
A arquiteta Mariana Costa, autora do projeto Salto na Obra, uma rede de entreajuda de trabalhadoras desta área, explicou à ‘The Mag/FLASH!’ que o homem vai trabalhar na construção quando não tem outras opções, a mulher quando resolve trabalhar na construção civil é por opção. "Logo isso já traz o diferencial na relação com o trabalho. Existem diversas situações que levam a mulher a trabalhar neste setor, mas em Portugal as situações que eu tenho visto acontecem por estas mulheres terem relação familiar com quem trabalha nas obras, seja o pai, o marido. Esta vivência acaba por apresentar uma realidade concreta para desenvolver um trabalho mais dinâmico, que elas já conhecem."
Do lado da clientela, ter uma trabalhadora mulher em casa parece causar primeiro "curiosidade", disse a arquiteta. "Mas depois, fruto de um trabalho bem feito, as pessoas aprovam e indicam. E nada melhor do que uma boa indicação para demonstrar a satisfação com o trabalho realizado".
"A maioria das minhas clientes acaba por referir, espontaneamente, que ter uma mulher em casa a tratar do que precisa de ser feito é muito mais confortável, porque inevitavelmente acaba por se criar uma dinâmica mais relaxada. Outra coisa engraçada que acaba por acontecer é que ficam comigo enquanto eu trabalho e demonstram genuína curiosidade em aprender e perceber mais sobre o assunto - várias já me lançaram o desafio de criar workshops no género ‘kit básico de sobrevivência’, que planeio explorar mais para o final deste ano", explicou Íris.
ONDE ESTÃO AS DESIGUALDADES
Uma consultora britânica revelou esta semana, à margem do evento internacional da semana da mulher na construção, os dados mais recentes sobre o setor no Reino Unido. As mulheres representam em 2024 15% da força de trabalho do setor, com 340 mil pessoas atualmente empregadas. Mas um dos dados que mais chamam atenção é que 37% dos novos trabalhadores da construção no Reino Unido são mulheres.
Em Portugal, o número total de trabalhadores empregados não está longe dos valores do Reino Unido. Em 2023, o nosso País registou o valor mais alto da última década, com 325 mil pessoas empregadas, noticiou o ‘Diário de Notícias’. No entanto, estes números não revelaram a percentagem de mulheres.
A expectativa é que haja uma tendência de crescimento das mulheres neste setor – que há anos precisa de milhares de trabalhadores. Mas ainda há muitos aspetos a serem tratados.
"Não é propriamente surpreendente, mas há sempre que lidar com o preconceito que é gigantesco. No meu caso, refiro-me essencialmente aos serviços e lojas satélites: por exemplo, o ano passado, ainda antes de me ter lançado nesta nova aventura, precisei de comprar um martelo demolidor para um projeto que tinha em minha casa. O funcionário de uma grande superfície da especialidade (onde devo dizer, sou muitíssimo bem tratada 95% das vezes) decidiu que eu não precisava daquela máquina, porque era um disparate alguém com a minha constituição física fazer aquilo. Felizmente, numa loja de comércio local, o atendimento foi diametralmente diferente e lá comprei a ferramenta que me fazia falta. De notar que essa mesma loja mais pequena é a única onde, até hoje, já vi por exemplo calçado de trabalho especificamente feminino. É relativamente normal que me passem - passo a expressão - atestados de incompetência só por ser mulher, mesmo que eu chegue com um discurso perfeitamente coerente e saiba exatamente o que quero ou preciso", comentou Íris.
"Eu poderia dissertar sobre isso por linhas e linhas", disse Lenara. "Desde o facto de termos que escolher a roupa com a qual vamos sair de casa, a roupa com a qual vamos trabalhar, a subestimação permanente das competências, capacidades e da força de uma mulher, os assédios morais e físicos, os olhares invasivos, a dificuldade de ir à casa de banho principalmente durante o período pois muitas obras nem têm uma casa de banho disponível, e quando há, a maioria dos homens não possui o mínimo de higiene ao usá-la. Além das mulheres que têm filhos e/ou são chefes de família: onde deixam as crianças? Quem cuidará? Quem levará e buscará na escola? E uma série de questões que culturalmente acabam caindo como responsabilidade das mulheres além do trabalho fora de casa".
"Como arquiteta, já sofri preconceito pois o cliente que me tinha contratado para desenvolver o projeto tirava dúvidas com o empreiteiro", contou também Mariana. "Ainda bem que eu tinha um ótimo parceiro profissional, que só dizia ‘fale com a arquiteta, ela é quem sabe’. Para mim, esta abordagem é nítida de um pensamento onde os homens, muitas vezes, não ouvem o que as profissionais mulheres têm a dizer".
Mariana deu sugestões para responder à entrada das mulheres na construção. "É necessário criar programas de formação e ter empresas preparadas para receber esta mão-de-obra. Um estudo realizado anos atrás percebeu, por exemplo, que não existiam sequer vestiários para mulheres nas obras. Poucas são as marcas com roupas técnicas e muitas ferramentas são desenhadas para mãos masculinas. Um contraste quando observamos que muitos programas de DIY [do it yourself] têm mulheres à frente".
E POR FALAR EM IGUALDADE... SALARIAL
De forma geral, as diferenças dos rendimentos entre homens e mulheres em Portugal ainda são significativas. De acordo com o Instituto Europeu para a Igualdade de Género, o nosso País melhorou ligeiramente, mas mantém-se abaixo da média europeia, ocupando o 15.º lugar na lista. Os homens ganham mais 17% do que as mulheres para exercerem as mesmas funções, e ainda há grande desigualdade no acesso das mulheres a cargos de poder. No caso da construção, a presença das mulheres no setor ainda não permite dar dados concretos sobre igualdade de género.
Mas, a título de exemplo, os Censos dos Estados Unidos mostraram em fevereiro deste ano que, apesar de haver desigualdade de género na construção no país, as diferenças salariais entre homens e mulheres neste setor são inferiores às diferenças em outros setores de atividade – na construção, os homens norte-americanos levam para casa mais 3,6% de rendimento em comparação com as mulheres; nos outros setores os homens levam em média mais 18%.
No Luxemburgo, o único setor em que as mulheres ganham mais do que os homens é a construção, uma realidade desde 2015, noticiou o site ‘Contato’, justificando a diferença com os cargos ocupados pelas mulheres, na maior parte posições de chefia.
No que depender de Íris e Lenara, parece que não haverá espaço para remunerações inferiores. "No meu caso pessoal, não creio que isso seja um fator. Eu cobro tanto quanto um homem - talento, não género. Mesma tarefa, mesmo pagamento", afirmou a diretora da SheDoes. "É urgente uma transformação na educação básica, além da criação de políticas públicas voltadas à igualdade de género", apelou Lenara.
"Se a mulher trabalhar de modo individual ou empreender neste setor, poderá ter mais liberdade e autonomia salarial", ressaltou Mariana. "Elas têm é que saber como 'precificar' corretamente, sem cair no erro do cobrar pouco e se desvalorizar. Com capacitação e autoconfiança, o trabalho realizado será de qualidade". E o mercado está a pedir isso. "Para que haja crescimento do setor, haverá mais necessidade de trabalhadores, com mais e melhores oportunidades. Não será isso por si só um bom motivo para as mulheres olharem com um outro olhar para a construção civil?"