
Em homenagem ao homem e ao empresário Rui Nabeiro (falecido no domingo, 19 de março, Dia do Pai), a FLASH! The Mag recupera uma entrevista realizada há cerca de dez anos, com o comendador à beira dos 80 anos de idade. Uma conversa que faz um retrato fiel da vida e dos valores de um homem que construiu um império a partir do nada, na raia alentejana, sem nunca perder os valores de família e de solidariedade que sempre lhe nortearam o caminho, e sem nunca desistir da sua terra de Campo Maior, nem das sua gentes. Ao longo dos 92 anos de vida, Rui Nabeiro escreveu a suas próprias páginas na História de Portugal e na História - e nas estórias - do Alentejo. Fica a entrevista.
Fomos recebidos no mais recente "amor" do comendador Rui Nabeiro, o presidente do Grupo Nabeiro – Delta Cafés. Sobranceira na planície, ergue-se a Adega Mayor, inaugurada em 2007, distinta com o traço de Siza Vieira. Sob o pretexto do vinho, estendeu-se a conversa. Excelente contador de histórias, Rui Nabeiro expôs o seu lado mais pessoal, falou com a humildade própria dos alentejanos. E foi com uma estória que o empresário começou a conversa e explicou o sonho de produzir vinho: "Há muitos anos, entre os séculos XVIII e XIX, todos os campo-maiorenses tinham dois pedaços de terra, um onde se produziam os cereais e outro destinado às culturas do azeite e do vinho. Esta foi uma tradição que conheci dos meus avós e dos meus pais e que se foi perdendo ao longo dos tempos. Sempre pensei fazer vinho, algo que aconteceu um pouco avançado na minha vida, sob a forma da Adega Mayor."
A vida de Rui Nabeiro confunde-se com a história recente de Campo Maior e, de outra forma, não fazia sentido. É, essencialmente, um homem de Campo Maior?
Sim. Eu sou o homem das obras de Campo Maior, da nossa região. Temos 22 departamentos distribuídos pelo País fora, mas é em Campo Maior que eu pretendo construir mais alguma coisa. Tenho setenta e muitos anos e não posso perder tempo. Nós não sabemos quando acabamos.
Nada disto fazia sentido se não fosse também para a comunidade de Campo Maior?Vivermos apenas para nós é um gozo muito pequeno. Gozo com o que faço e com a vida que tenho e, por isso, caminho para Campo Maior, para o nosso País e para o mundo.
É uma teimosia sua ficar no interior? Porquê ficar no interior?Porque eu sou do interior, foi aqui que senti as dificuldades dos meus pais e dos meus avós. Quando me pergunta porquê Campo Maior? Porque eu sou de cá. Estar aqui hoje é fácil: Lisboa fica a pouco mais de uma hora, o Porto e Madrid a três horas, temos um aeroporto a 20 quilómetros... Complicado era há uns anos, quando demorava uma manhã a chegar a Lisboa ou um dia inteiro a chegar ao Porto.
Foi muito diferente quando começou sozinho, em 1961?Sozinho, mas com uma retaguarda importante. Há sempre quem nos ajude. Tive um tio e um pai maravilhosos. O tio foi o homem da atitude comercial e industrial. O meu pai juntou-se ao irmão, mais tarde, e eu trabalhava ao lado deles na torra do café.
Foi a sua escola?Foi a minha escola, a minha pré-adolescência e adolescência. Marca-me quando se fala nas crianças que não brincam, porque eu não brinquei, não fui criança. As condições de vida não o permitiram. Faz parte da minha cultura de vida: saber das carências de um pai e de uma mãe, dar-lhes apoio e ajudá-los a caminhar. São coisas naturais, não se explicam. Faz parte da cultura da nossa casa.
"TENHO UMA CULTURA GERAL BOA, MAS É A CULTURA DO POVO, DO TRABALHO E DA EMPRESA"
É por isso também que está rodeado pela família, que tem os filhos e os netos a trabalharem consigo?Para mim é natural. Tenho quatro netos, três estão a trabalhar comigo – um trabalha com o pai (Marcos Tenório Bastinhas, filho do saudoso cavaleiro Joaquim Bastinhas). Para além disso, existe uma ligação de total amizade com todos os colaboradores do nosso grupo. Eles sentem os nossos problemas e nós sentimos os deles. Todos os dias deixo mensagens de exemplo, de encaminhamento de carinho.
Faz questão que seja uma liderança pelo exemplo?Não é que seja diferente das outras pessoas, são atitudes naturais, que tanto eu como os meus filhos – que tentam ser iguais a mim, ou seja, ser os melhores –, temos. E, hoje, os netos, pensam da mesma forma. São aspectos da tal cultura familiar. É muito importante a pessoa ter um exemplo para se guiar. Tanto para a minha família como para os colaboradores da empresa, dou exemplos de luta, de saber estar, de facilitar o mundo às pessoas.
E como é essa sua relação com os filhos e os netos que trabalham na empresa?
Os meus filhos frequentaram a universidade, mas nenhum deles terminou o curso. Os netos concluíram a formação académica (à excepção do Marcos), mas nunca deixaram de beber a água desta fonte e seguem os passos do avô. Respeitam o avô e o que tenho feito por eles. Tenho uma cultura geral boa, mas é uma cultura do povo, do trabalho e da empresa. Eles trazem a vantagem do conhecimento.
"NÃO TENHO ARREPENDIMENTOS NA VIDA, APENAS DAQUILO QUE NÃO FIZ"
Foi fácil criar os filhos?Tenho dificuldade em responder a essa questão. O homem que sonha atingir determinados fins e pretende conquistar determinados objetivos nunca é um pai atento. Acabo por ser desculpado, porque foi a pensar no trabalho e não noutras coisas. Hoje, dedicaria mais tempo aos filhos. Deixo este conselho a qualquer pai. Apesar de tudo, tive bons filhos e tenho bons netos.
Foi um pai ausente, portanto?Fui. Tive um pai rigoroso e eu também o fui e sou, mas os filhos carecem de um acompanhamento o mais perto possível.
Esse trabalho ficou para a sua mulher [Alice do Carmo Nabeiro]?Ficou. Por vezes, ela queixa-se um bocadinho, porque não a acompanhei sempre e essas coisas marcam.
Arrepende-se de não ter sido mais presente?Não lhe chamo arrependimento, mas puno-me a mim próprio. Olhando a esta distância, o tempo chega para tudo e tinha chegado para tudo, podia apenas demorar mais um ano. Não tenho arrependimentos na vida, apenas daquilo que não fiz.
O que lhe falta fazer?Há muita coisa que não fiz. Há negócios que podíamos ter feito, outros que não devíamos ter adiado e sentirei sempre que falta fazer alguma coisa. Não vou parar.
"BASTA OLHAR PARA AS PESSOAS PARA PERCEBER QUEM ESTOU A RECEBER EM CASA"
Em criança não pôde estudar. Por isso, criou a Cátedra Rui Nabeiro, pela Biodiversidade, na Universidade de Évora?Não sei se será isso. Sinto que há a necessidade do conhecimento. Deixo esse conselho, que a cultura académica é realmente necessária.
O Grupo Nabeiro é o principal empregador da região, tem ideia quantas pessoas trabalham na empresa?Temos perto de 2800 pessoas no total. Aqui na região serão 1500.
Faz questão de conhecer as pessoas que trabalham consigo?Aqui na fábrica conheço toda a gente. Basta olhar para as pessoas, para perceber quem estou a receber em casa.
Continuam a bater-lhe à porta a pedir emprego?Diariamente. É duro.
O que sente quando não pode ajudar?Dou muita esperança às pessoas. Esperança séria e não enganosa. Quando as pessoas vêm falar comigo tento que regressem felizes à sua casa. É aí que está o meu fraco, comprometo-me e desgasto-me.
Há uma fórmula para chegar ao topo?Tem que se ser feliz. Tem que se ter a felicidade, ser empurrado e ter o rigor de não deixar para amnhã o que tem de se fazer hoje. Tem que se sorrir, ter audácia e tive momentos em que fui muito audacioso. Se não o tivesse feito, o ambiente não seria o mesmo.
É muito rigoroso consigo próprio?Quando não posso, vou na mesma. Nunca fiquei em casa ou na cama. A exigência e o rigor para nós próprios é muito importante. É essa a fórmula.
"SEMPRE GOSTEI DE PAGAR O MAL COM O BEM"
Aquilo que construiu foi a pensar nos filhos, na comunidade de Campo Maior ou pura vaidade?Vaidade é coisa que não tenho, mas devemos ter orgulho no que fazemos. O meu pai nunca teve nada e deixou-nos muito cedo, com 40 e poucos anos. Eu ficaria a dever muito à comunidade se não pensasse em quem carecia da minha atitude. Não fiz nada a pensar em mim nem nos filhos, fiz a pensar na comunidade em geral.
Quais são as suas principais preocupações sociais?
É dar condições a quem não as tem. No meio desta crise, dar melhor vida aos outros, dar condições de saúde. A minha preocupação a nível social é generalizada, a minha principal preocupação são as pessoas que não sabem o que é uma casa.
Tem muitos amigos?Calculo que sim. Todos temos amigos e inimigos, mas recebo muitas mensagens que me agradam de sobremaneira. Tento fazer o bem a toda a gente.
E como lida com os inimigos?Sempre gostei de pagar o mal com o bem.