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Paredes de Coura e Vilar de Mouros: As histórias escondidas dos mais antigos festivais de verão

"Camionetas de Skinheads", o microfone "gamado" a Elton John, o papel higiénico de Nick Cave, o dia em que Bono Vox trepou à torre de iluminação ou a noite em que Juliette Lewis foi assediada são algumas das memórias dos mais lendários eventos de música ao vivo em Portugal. Há histórias de amor, de desespero e quase falência, de encontros e desencontros. Da PIDE à pior chuvada do século. Se foi em Vilar de Mouros que Elton John se estreou em Portugal, aos 24 anos, foi no festival de Paredes de Coura, por exemplo, que Tiago Brandão Rodrigues começou a tornar-se Ministro da Educação.
Miguel Azevedo
Miguel Azevedo
11 de agosto de 2022 às 22:24
Paredes de Coura
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Os mais velhos ainda se recordarão do burburinho que gerou a primeira edição do Festival Paredes de Coura no inicio dos anos 90. Na pequena e pacata vila minhota chegava a dizer-se que vinham aí "camionetas de skinheads" que iam destruir tudo. Mas alguns também deverão lembrar-se de uma história que contribuiu para mudar tudo, a de um festivaleiro muito mal encarado, de rastas, piercings e tatuagens, que era olhado de lado por onde quer que andasse, mas que acabou por assistir e salvar da morte um idoso que se sentiu mal no meio da rua. O temido forasteiro era afinal um médico.    

Nascido em 1993, o Festival Paredes de Coura foi criado, sem qualquer intenção comercial, por um grupo de "miúdos" que só queria passar um bom bocado. No livro comemorativo dos "22 Anos" do festival, lançado em 2015, João Carvalho, um desses miúdos que ainda hoje está por detrás da organização do evento, recorda que a ideia era "fazer algo para a juventude". José Eduardo Martins, o antigo Secretário de Estado do Ambiente, que também fazia parte desse núcleo fundador, lembra que "para um adolescente, Paredes de Coura era uma seca. Interessavam-me os beijos que podia roubar atrás da igreja e pouco mais". 

Paredes de Coura
Paredes de Coura

A título de curiosidade, do grupo de amigos que pensou e executou o Festival Paredes de Coura faziam ainda parte Vitor Paulo Pereira, o atual presidente da Câmara Municipal de Paredes de Coura e o cientista com trabalhos desenvolvidos na área do cancro, Tiago Brandão Rodrigues, que foi Ministro da Educação até março deste ano. Conta-se, aliás, a história de que foi precisamente lá, no festival, em 2014, que Tiago começou a tornar-se ministro, uma vez que foi no recinto que conheceu António Costa e falou com ele pela primeira vez. "Fiquei surpreendido porque ele já conhecia o meu trabalho científico. Tivemos uma conversa curta, que depois instigou conversas maiores" viria a revelar mais tarde em entrevista à 'Noticias Magazine'.    

Foi depois de uma noite de fados em Paredes de Coura, quando "o artista mais estrangeiro" que podia ser visto por aquelas bandas era o "Carlos do Carmo" diz José Eduardo Martins, que o tal grupo de amigos pensou em criar algo mais moderno, mais virado para o rock, para animar  os jovens da terra. No dia seguinte foram desafiar o presidente da Câmara Municipal para montar o evento e nessa mesma noite "desenharam" a primeira edição do festival, que viria a nascer, de forma muito pouco metafórica, no quintal de casa dos pais, no mesmo local onde costumavam jogar à bola.   

Para um festival que hoje é feito com um orçamento de cerca de 3 milhões de euros, muitos nem acreditarão que a primeira edição, então exclusivamente virada para a música portuguesa, foi feita com apenas 180 contos (900 euros) e só três anos depois, em 1996, começaram a ser cobrados bilhetes (até então, na sua ingenuidade, os jovens organizadores receavam que cobrando entrada ninguém aparecesse). Mil escudos para os três dias foi então o preço fixado para o primeiro ingresso. Como o dinheiro não abundava, o festival era feito à base do desenrasca. Numa verdadeira sociedade de amigos, eram os próprios que ajudavam a montar os palcos, a colar cartazes e até a fazer as camas dos artistas. "Até a cola era improvisada numa mistura de água e farinha", viria a recordar mais tarde João Carvalho. 

Dos anos 90 para cá, no entanto, tudo mudou e até a própria vila de Paredes de Coura já nem vive sem os forasteiros que esgotam as dormidas, enchem os restaurantes e dão uma nova vida ao comércio tradicional. "As pessoas chegam a oferecer sopa e café às pessoas que vêm ao festival", diz orgulhoso da hospitalidade, João Carvalho. Estima-se que durante os dias de festa, sejam levantados perto de 2,5 milhões de euros nas caixas multibanco, dinheiro que acaba por ficar na vila e que funciona como botija de oxigénio para muitos comerciantes e lojistas até ao ano seguinte. O Festival emprega cerca de 1600 pessoas.       

Considerado por uns como a "meca da música indie" e por outros como um "evento gourmet", o Paredes de Coura é hoje o mais antigo festival em Portugal a realizar-se ininterruptamente. Este ano cumpre a sua 28ª edição, entre os próximos dias 16 e 20 de Agosto, com nomes como Beach House, Idles, Parquet Courts, L'imperatrice, The Blaze ou Pixies, e volta a assentar arraiais nas margens da praia Fluvial do Taboão. Muitos não saberão, mas no decorrer da sua história, o festival trouxe, pela primeira vez, a Portugal nomes que são hoje incontornáveis como, imagine-se, Arcade Fire, Queens Of The Stone Age, Coldplay, Flamming Lips, The Kills ou The National, entre muitos outros. 

Ao longo dos anos, o Festival somou histórias, insólitos e algumas bizarrias para memória futura. Um dos episódios que marcou o evento, por exemplo, passou-se em 2005 quando o realizador e músico Vicent Gallo, que andava com a libido à flor da pele e já tinha andado pelos bastidores com um papel na mão a informar que estava "no quarto 308 para o caso de alguém estar interessado", passou por Juliette Lewis, que atuava na mesma noite, deu-lhe uma palmada no rabo e, à descarada, perguntou-lhe: "Do you want to fuck tonight?". Nessa mesma edição do festival, Nick Cave surpreendeu tudo e todos ao aparecer em palco com um staff que durante todo o tempo teve a preocupação de nunca estar um passo à sua frente. Pediu um camarim preto, inclusive o papel higiénico.    

A edição de 2005 teve, de resto, um peso especial nos anais do Paredes de Coura. É que na edição anterior, em 2004, o festival quase que terminava, depois de uma chuva torrencial que estragou o palco, fez aluir o terreno e levou ao cancelamento de vários concertos. "No dia seguinte os jornais noticiavam que tinha sido a maior chuvada em Paredes de Coura em 99 anos", recorda João Carvalho. Com um prejuízo brutal e perante os únicos dois cenários possíveis, desistir ou continuar, os organizadores optaram pela segunda. Arriscaram e até chegaram a hipotecar as próprias casas. 

Mas há muito mais histórias escondidas para trazer à luz do dia. Alguns sortudos e privilegiados, por exemplo, ainda deverão lembrar-se do dia em que Neil Hannon, vocalista dos Divine Comedy acabou a noite, num bar, a servir cervejas a toda a gente ou quando Erlend Oye dos King Of Convenience recusou o hotel que lhe estava destinado no Porto, preferiu ficar instalado na vila e apareceu a tocar guitarra num bote de borracha na praia do Tabuão.  Contam-se ainda histórias de amor, de luas de mel, de relacionamentos reatados e de paixões descobertas, como é o caso de Jorge Romão, dos GNR, que foi ao festival depois de ter terminado um longo casamento. Consigo levou a filha que também tinha terminado o seu namoro. Saíram de lá os dois comprometidos.

ENTRETANTO EM VILAR DE MOUROS...

Se o festival Paredes de Coura nasceu da vontade de um grupo de amigos que queria colocar no mapa a vila de Paredes de Coura, o Festival Vilar de Mouros já tinha nascido, quase trinta anos, antes, em 1965, pela carolice de um médico, António Barge (filho da terra), então como um evento meramente folclórico. Só viria, no entanto, a chamar a atenção, quatro anos depois, em 1968, especialmente a atenção da PIDE, uma vez que a edição desse ano contou com dois senhores anti-regime chamados Zeca Afonso (antigo preso politico) e Adriano Correia de Oliveira. Mas o festival não teve o impacto pretendido, e António Barge decidiu parar dois anos para pensar em algo mais arrebatador.       

Com um novo formato, o festival Vilar de Mouros regressaria então em 1971, com um cartaz  bem mais variado que incluía, por exemplo, uma noite luso-galaica, António Vitorino de Almeida, Quarteto 1111 e os estrangeiros  Manfred Man e Elton John (à data com 24 anos). Muitos não saberão, mas a intenção original era contratar os The Beatles ou em alternativa os The Rolling Stones ou Pink Floyd, só que os primeiros terminaram entretanto e as bandas de Mick Jagger e Roger Waters não tinham datas disponíveis. Considerado ainda hoje o 'Woodstock português' (em versão miniatura claro), o Festival de Vilar de Mouros de 1971 agitou o país como nunca tinha acontecido antes e chamou muitos estrangeiros (muitos hippies à mistura), a Portugal. E enquanto no norte do país e na Galiza eram distribuídos panfletos aos automobilistas para que dessem boleia aos festivaleiros, a igreja católica excomungava António Barge e toda a sua família.      

Para a história da primeira edição (a sério) do Festival Vilar de Mouros ficaram os números: o evento, que conseguiu reunir quase 30 mil pessoas, custou 2500 contos e deu 700 de prejuízo, tendo Elton John ganho um cachet de 400. José Cid, que tinha subido a palco com o Quarteto 1111, ainda hoje se recorda bem da atuação do cantor e do episódio que daí resultou. "O Elton John acabou a usar a nossa aparelhagem, porque era a melhor que lá havia.  Quando ele chegou e viu o horror das "cornetas" que lá estavam para cantar, não esteve com meias medidas e pediu à organização para nós lhes alugarmos a nossa aparelhagem. Na altura o Quarteto 1111 estava um bocadinho à frente do que se usava por cá", recorda. "Claro que não alugámos nada. Emprestámos. Em troca roubei-lhe o microfone, um Electro-Voice. Ainda hoje o tenho em minha casa. Está no meu estúdio e ainda funciona em perfeitas condições".    

O Festival Vilar de Mouros só regressaria onze anos depois em 1982 e entre vários percalços, desde artistas que não apareceram (como foi o caso do trompetista Don Cherry que simplesmente não lhe apeteceu viajar), até ao facto da GNR e da Policia Judiciária terem decidido decretar guerra aberta a quem transportava erva (a caça começava logo na estação de comboios de Caminha), a edição desse ano ficou marcada pela atuação de uns senhores, então ainda muito pouco conhecidos por cá, chamados U2. Quem lá esteve ainda se recordará de Bono, então com 22 aninhos (acabados de fazer), a trepar à torre de iluminação.    

Vilar de Mouros
Vilar de Mouros

Sempre muito intermitente, o Festival Vilar de Mouros regressaria apenas 14 anos depois, em 1996, então, entre outros, com Da Weasel, Primitive Reason, Xutos & Pontapés, Young Gods e uns Stones Roses já em decadência que subiram ao palco visivelmente alcoolizados (meses mais tarde haveria de ser anunciada a dissolução do grupo). Talvez por culpa deles, nessa edição foi batido um recorde de consumo de cerveja, 36 mil litros, que geraram um lucro de 28 mil contos. 

Após novo intervalo de dois anos, o Festival regressaria em 1999 para se realizar ininterruptamente até 2006, período durante o qual passaram pela vila minhota nomes como Alanis Morissette, Sonic Youth, Iron Maiden, Beck, Neil Young, Ben Harper, Public Enemy, Peter Gabriel, The Cure, Bob Dylan, Robert Plant, Joe Cocker ou Iggy Pop. Depois de 2006, no entanto, o festival mergulharia num novo iato, agora de oito anos,  devido as discordâncias entre as partes envolvidas na organização. Regressaria em 2014, organizado pela Fundação AMA Autismo (que deixaria o projeto dois anos depois), pela Câmara de Caminha e pela junta de freguesia de Vilar de Mouros.

Com novas edições entre 2016 e 2019 (não se realizou em 2020 e 2021 por causa da pandemia), o Festival Vilar de Mouros está de volta este ano, entre os próximos dias 25 e 27, com um cartaz revivalista que inclui Placebo e Suede, Simples Minds, Bauhaus e Iggy Pop. Faça-se cumprir a história.

 

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