
Foi há muitos anos que perdi o teu pai, Não foi agora, quando aquele camião de combustível o colheu a poucos metros da passadeira. O teu pai sempre gostou de ir ao café beber a bica e conversar com as empregadas. Aquilo devia ser chato para ela, porque passava lá muito tempo. Com a precaridade de emprego neste país elas rodam muito, os patrões não estão para fazer contratos efetivos e as raparigas ou mulheres feita têm de aceitar o que o patronato quer.
O teu pai já gostou de viajar. Podes não acreditar, porque nos últimos 30 anos quase nem saída de casa, porém nem sempre foi assim. A nossa última viagem foi num verão muito quente, fomos passar uns dias a S. Miguel onde ele tem uns primos muito afastados e muito simpáticos. Parece que os primos quanto mais afastados são, mais simpáticos parecem, nunca reparaste nisso Luisinha? Em S. Miguel foi assim. Chegámos ao aeroporto e estavam o Arménio e a Mimi à nossa espera, os dois roliços e rosadinhos, ele de cabelo já grisalho e ela com uma cabeleira cor de caju muito armada, cheia de laca. Uns provincianos de coração puro, micaelenses de gema, a querer mostrar a sua ilha como se fosse a Atlântida perdida.
Durante quinze dias vimos tudo: a lagoa de Fogo, as lagoas das Sete Cidades, as Furnas, tomámos banho na piscina de água amarela, comemos o cosido, aquilo é lindo. Muitas vacas e hortenses, as hortenses enormes e então as vacas, nem se fala. O Arménio era um homem vivo e inteligente, a Mimi nem tanto, mas compensava em simpatia o que lhe faltava em intelecto. Tudo fizeram para nos agradar: comida boa, lugares lindos, boa companhia, umas férias muito agradáveis.
Estávamos na aldeia de Mosteiros, no fim da ilha, uma aldeia piscatória maravilhosa, rematada com uma praia linda semeada de grandes rochas, quando o teu pai se levantou da mesa e desapareceu. Pensámos que tinha ido à casa de banho, mas nunca mais voltava. Como era um lugarejo, os primos logo começaram a perguntar às pessoas se tinham visto um homem alto, bem-parecido, de boné de xadrez e óculos de massa em algum lugar.
Fomos dar com ele em casa de uma viúva, a rir-se com ela, os dois sentados na mesa de pedra do quintal a beberem tinto de garrafão. O teu pai parecia bem da cabeça, mas disse à pobre criatura que era viúva e que tinha vindo de Newark para se casar com ela, Insistia que tinha namoriscado quando eram jovens, el que nunca esteve na América e nunca visitara S. Miguel.
Quando a mulher começou a contar a história, ele parecia alheado, como se não estivesse ali. De regresso a casa dos primos perguntei-lhe o que eu lhe tinha passado pela cabeça. Respondeu que ela era maluca e que ele não tinha dito nada daquilo. Fiquei confusa e apreensiva. E depois já sabes como foi; passava a vida a desaparecer, inventava outras vidas, gastava o dinheiro da reforma em relógios sem valor nas casa de penhores, foi perdendo o juízo, até ser um espectro da pessoa que foi.
Agora que o destino o levou, talvez volte a S. Miguel para visitar a Mimi. O Arménio apagou-se com um ataque cardíaco, foi o camião de gasolina dele, coitado. Mas nunca perdeu o juízo e cuidou sempre bem da Mimi até ao dia em que partiu, disse-me ela, chorosa, ao telefone. Com o teu pai não foi assim. Tive de cuidar dele o melhor que soube, até ao dia em que atravessou a rua e encontrou a morte a poucos metros da passadeira.