
Pode uma semana mudar a vida de uma pessoa?
Tudo e nada, parece-me a resposta mais acertada. Nunca nada termina nem como nem quando queremos. O mais fácil de controlar são os inícios, e mesmo assim, sabe Deus. Quando pensas que tens tudo controlado, acontece alguma coisa, por mais pequena que seja, que te chama ao teu lugar.
O teu lugar não é a casa onde vives, a tua secretária no trabalho, a mesma mesa onde te sentas no restaurante de bairro ondes jantas três vezes por semana porque a comida é boa e barata e te tratam como se fosses da família. O teu lugar é onde te sentes feliz, ou então de onde não consegues sair. Pode ser um refúgio ou apenas um buraco. O teu lugar é um lugar que só entram aqueles que te conhecem bem. Pode ser o teu quarto de vestir ou a cave de casa dos teus pais, um sótão cristalizado nas memórias da infância, uma praia, ou até uma estação de comboio.
Passara uma semana desde que o Nuno e eu deramos as mãos. Desde esse dia nunca mais deixámos de andar de mãos dadas, muito antes do primeiro beijo. Quando um filme é muito bom ou um livro é excepcional, nunca queremos chegar ao fim, não é? Com certas histórias de amor também acontece. Os beijos estavam a ser atrasados de propósito. Ele tinha medo que pudessem não ser bons. Eu tinha a certeza que assim que começassem, nunca mais iriam parar.
Fomos almoçar às pizzas perto do Lux, já tarde. O rio estava lindo, espelhado de sol e de paz. Sentamo-nos lado a lado para podermos dar as mãos sem manobras acrobáticas sobre o tampo da mesa e para escapar ao olhar inquisidor ou invejoso dos quantos que ali almoçavam de coração desocupado. A felicidade alheia nem sempre é uma coisa agradável de se ver para quem anda de esquerda com os assuntos sentimentais. É como pedir caviar com champanhe e ao sair do restaurante não dar dois euros ao arrumador, é quase ofensivo.
- Vamos a Santa Apolónia apanhar um comboio qualquer? – perguntou-me com os olhos muito abertos. Devo estar a sofrer de um defeito e percepção, porque sempre que me encontro com o Nuno, os seus olhos parecem-me maiores, como os quadros da Margaret Keane. São castanhos, semeados a minúsculas pintas de verde que só se vêm à luz do dia. E umas pestanas que parecem toldos. Tenho de me concentrar para deixar de o fitar, mas como ele faz o mesmo comigo, acaba por não ser assim tão complicado.
- Um comboio qualquer? Ao calhas? Sem destino?
- Quando o apanharmos já temos destino – responde, com a calma de sempre – e depois podemos voltar a seguir, se nos apetecer, ou então ficamos onde sairmos. – Achas uma loucura? Loucura é o Trump ter ganho as eleições nos Estados Unidos.
- Não, acho ótima ideia. Desde que a próxima estação não seja Vladivostok – respondo, a rir-me de tudo. Estamos sempre na risota desde que nos conhecemos, o humor é um dos grandes aliados do amor.
Chegamos ao átrio da Estação e fixamos o olhar no placard. Alfa pendular, Braga, Urbano, Gare do Oriente, Intercidades, Faro, Regional, Caldas da Rainha.
- Apetece-te algum? – pergunta com o olhar sonhador.
- Não. Apetece-me ficar aqui na Estação, sentada num banco a imaginar a vida das pessoas que partem e que chegam. Não sei viajar sem destino. Não consigo fazer isso.
- Está bem – responde o Nuno, vagamente despontado – talvez tenha sido uma ideia disparatada – concluiu, apertando mais a minha mão, como quem quer pedir desculpa por um erro que não cometeu.
O que fazes quando encontras alguém que é tão sonhador como tu, que se alimenta de ideais elevados e de ideias peregrinas, que acredita mais na valentia do Dom Quixote do que no poder dos moinhos de vento?
Dás-lhe um beijo. É isso que deves fazer. Não precisas de apanhar nenhum comboio, a viagem já começou, quando os dedos se tocaram pela primeira vez como se conhecessem desde sempre e a primeira vez nunca tivesse acontecido. O beijo é o início de todas a grandes viagens.
- Agora já podemos inventar todas as cidades que quisermos – disse-me.
- O céu é o limite – respondi.
E não tive tempo para dizer mais nada, porque os beijos sucediam-se, e quantos mais dávamos, mais perto de casa me sentia.