
Esta noite sonhei que estava no ano de 1920, prestes a embarcar num cruzeiro com a minha tia Clotilde. Nunca tive uma tia chamada Clotilde, mas não faz mal. A tia Clotilde está atrasada, chega ao cais da Rocha do Conde de Óbidos de libré com um chapéu com plumas pequenas e um casaco de peles demasiado comprido para a sua estatura.
Nos anos 20 eu também já sou alta para a minha geração – tal como era nos anos 80 – mas o meu cabelo é encaracolado e sou um bocadinho larga de anca. Tenho a pele muito clara, as mãos pequenas e um par de olhos azuis que anda a partir corações desde que tenho 13 anos. O problema é que já estou com 24 e nunca quis casar com nenhum pretendente. Já recusei tantos que a minha mãe, desesperada com a ideia de ter uma filha solteira, decidiu pedir à tia Clotilde que me levasse num cruzeiro, a ver se arranjo noivo na viagem.
A tia Clotilde é irmã da minha avó Edite, enviuvou há alguns anos e desde então vive em dedicação e devoção frenéticas pelas suas sobrinhas que são a minha prima Mimi, a minha irmã Maria do Carmo e eu. Só que as duas outras palermas já casaram, a Mimi com um amigo do irmão que foi colega no Colégio Militar e a minha irmã com o Manuel Francisco, filho mais velho do nosso médico lá de casa, que andou sempre de roda das saias dela desde gaiato, e a Carminho que é mandona e tem a mania que é a Rainha da Estefânia, viu ali um pajem para a servir. Ele é uma fraca figura, tens os dentes muito tortos e bastante amarelos, é fanhoso e lingrinhas, mas a minha irmã que é oposto de mim em tudo, prefere um pássaro na mão do que dois a voar, mesmo que o pássaro mais pareça uma galinha depenada e pronta para ir a estufar. Já eu, aborreço-me com tudo o que me aparece. Às vezes ainda tento interessar-me, mas depois não consigo, eles dizem muitas vulgaridades, não sabem quem é o Séneca, nem o Epiteto nem o Marco Aurélio. Se lhes falo do Livro das Meditações, pensam que é um missal.
Ora eu não estou para me casar com um rapaz qualquer que a minha mãe acha que é bom partido só para lhe fazer a vontade. Ou me aparece alguma coisa de jeito, ou fico para tia solteirona, coisa que em nada me assusta, porque a tia Clotilde parece muito mais feliz desde que se encontra viúva, isto não se pode dizer, mas é mesmo assim, de modos que um marido, além de dar muito trabalho, pode ser o cabo dos trabalhos, e eu não estou para isso.
Assim que sai do libré, aproxima-se um senhor de fato completo, com um relógio de ouro guardada num dos bolsos do colete, chapéu e sapatos com polainas para a ajudar. Nunca o vi, nem a tia Clotilde, que logo lhe pergunta o que deseja o cavalheiro e lhe ordena em tom ríspido que se apresente.
- O meu nome é Álvaro Sampaio, minha senhora, sou viúvo e senti-me na obrigação de ajudar vossa excelência a descer do libré. Foi um impulso, peço perdão pela ousadia, mas foi assim que a minha santa mãe que Deus tem me educou, ajudar sempre uma senhora em qualquer circunstância.
Vi o olhar da tia Clotilde a percorrer a figura da criatura de alto a baixo. Depois ajeitou o chapéu com grande coquetterie e respondeu:
- O amável cavalheiro está no direito de fazer o que muito bem entender.
- Nesse casso, permita-me que lhe dê o meu braço e a amparar na subida pela escada de portaló.
- Não se incomode, tenho ali a minha sobrinha Madalena à espera. - Responde a tia, apontando para mim com o cabo de osso do seu guarda-chuva que tem uma linda cabeça de pato esculpida com arte e requinte. Não sei porque traz um chapéu de chuva para um cruzeiro, mas depois de uma certa idade as pessoas têm as suas manias e há que respeitar.
- Oh, mas que menina tão bonita! É casadoira?
- Isso é o que nos gostávamos, mas olhe que com aquele feitio de rapazinho, ainda me caso antes dela.
- E faz muito bem – responde o pretendente inventado.
Ainda bem que trouxe comigo o Livro das Meditações do Marco Aurélio. Estou em crer que vai ser uma longa viagem.