
Porque é tão difícil esquecer aqueles que amamos? Porque quase sempre não queremos. Não queremos deixar de sentir aquele amor imenso, aquilo tudo que foi muito, que foi quase tudo, que nos levou para galáxias longínquas, que nos deu asas e super-poderes, que nos fez sentir imortais. Se as metades dependem das vontades, a arte de esquecer depende muito mais da vida do que da nossa vontade. Quando alguém desiste de nós, não vale a pena correr atrás, fazer piruetas, acenar com um isco, não vale a pena fazer nada a não ser aceitar e esperar. Aceitar sem culpa, esperar sem expectativas. E depois, é deixar a vida correr, ficar atento aos sinais, descansar o corpo e o coração, respeitar o luto e o pousio, até a vida dar a volta à vida.
Penso nisto tudo enquanto o vento assobia nas janelas do hotel com vista para o mar que escolhi para celebrar as Bodas de Ouro dos meus pais. O meu pai veio contrariado, arranca-lo de casa e da rotina já nem sequer é uma tarefa hercúlea, é quase uma missão impossível, mas a minha mãe ficou tão entusiasmada com a ideia que os meus irmãos e eu organizámos tudo e trouxemos o meu pai a reboque. Coube à minha irmã Rosa e ao meu cunhado António tal incumbência, o meu irmão Gustavo e a minha cunhada Verónica fizeram a lista de convidados e eu organizei a festa: o catering, a decoração e a música. Há muitos anos que o meu pai não via o mar, pensei que este hotel na linha do Estoril com as suas vidraças rasgadas e generosas seria uma boa escolha.
Ninguém sabe a razão secreta da minha escolha. Foi aqui, no quarto 1014, que fizemos amor pela primeira vez, nem sei ao certo há quantos anos, ou talvez saiba, mas prefiro nem pensar nisso. Só sei que éramos mais novos, embora nenhum de nós esteja a ficar velho. As rugas tardam em aparecer-me a mantenho a cintura dos 20 anos e tu tens a mesma pele de príncipe, embora a barba e o cabelo já se apresentem em dois tons, o que só te fica bem. De vez em quando dizes que tens barriga, mas eu vejo-te sempre igual, às vezes mais cansado e quase nunca feliz, a não ser quando estás tão perto que é impossível imaginar-te mais colado à minha pele e ao meu mundo. Tudo isto se passa numa outra dimensão à qual os terrenos não têm acesso, é como se não existisse. E, no entanto, existe, desde lado da vida, que afinal é o outro.
Voltando à festa das Bodas de Ouro, acredito e espero que tudo corra bem. A sala está decorada com alfazemas e hortências, as flores preferidas da minha mãe que também são as minhas, escolhi toalhas verde-água, serviço de filete dourado da Vista Alegre, um menu variado para todos os gostos, sobremesas e queijos à descrição, bons vinhos, um sortido de digestivos e claro, champanhe para o brinde oferecido pelo meu amigo Miguel, aquele milionário que está sempre disposto a dar-me o mundo, caso eu aceda em me interessar por ele. Quando lhe digo que a amizade é o nosso único território possível, ele acena com a cabeça e responde sempre o mesmo, eu quero é que você se sinta bem, minha querida. Fico a olhar para ele sem saber o que lhe responder, acho pueril que ainda me trate por você ao fim de tantos anos, mesmo sonhando casar comigo. Embora só tenha mais dez anos do que eu, talvez seja mais próximo da geração dos meus pais pelos modos e entendimento do mundo.
A grande questão é que, como tu dizes, quando uma pessoa se apaixona não escolhe. O Miguel dava metade da sua fortuna para me ganhar e eu nunca sequer pensei nisso. Os meus pais tiveram muita sorte, eram ainda adolescentes quando se conheceram, o mesmo aconteceu com os meus irmãos e cunhados. Quem me dera ter-te conhecido antes, quando ainda podia haver espaço para mim. Não aconteceu, paciência.
Hoje à noite, quando estiver a brindar pelo amor dos meus pais, também vou brindar baixinho por ti e para ti. E quando for dormir, fica a saber que escolhi o mesmo quarto onde voámos juntos pela primeira vez, tu em modo Sufista Prateado e eu armada em Mulher-Elástico.
Esquecer-te? Quem sabe um dia, quando a vida der a volta à vida e eu consiga viajar para um país onde o meu coração não bata mais depressa por ti. Mas agora ainda és tu e tu e tu, apesar da vida, apesar do silêncio, apesar de tudo.