
- Eu tenho de te pedir desculpa por tudo o que aconteceu - disse o Gonçalo com o mesmo sorriso que me deu a volta à cabeça em 1992.
– E espero do fundo do coração que consigas perdoar-me, porque sempre gostei de ti, mas era miúdo e não sabia lidar contigo.
Passaram mais de 25 anos desde a última vez que nos sentámos à mesa e pedimos um vinho. Seguíamos sempre o mesmo ritual: o restaurante era conversado entre os dois, eu escolhia o jantar, ele dizia ao empregado "eu quero o mesmo que a senhora quiser", depois abria a carta dos vinhos e pedia a minha opinião por educação, porque de vinhos e de futebol nunca percebi nada. O Gonçalo nasceu para o néctar dos deuses, cresceram-lhe os dentes nas vinhas da família em terras do Dão que rodeiam um solar secular enfeitado a cantarias trabalhadas e jardins franceses. Apesar de ter estudado em Lisboa, nunca deixou de ser um bicho de campo. Depois do jantar voltávamos para a minha casa e fazíamos amor. No dia seguinte ele desparecia quando eu não queria e reaparecia sempre que já não o esperava.
Quando éramos miúdos eu chamava-lhe agrobeto e ele chamava-me Teresinha, com todo o carinho, talvez por ser o mesmo nome da mãe, que me tratou como sua filha até ao fim da vida. Eu vivia para respirar o ar dele e ele achava que eu era a miúda mais divertida do grupo. Eu sonhava com o estatuto de namorada oficial e ele achava que eu era um caso tórrido. Imaginava-me de véu e grinalda e ele imaginava-me de ligas e de saltos agulha.
Este disparate emocional durou demasiados anos, como é tão comum às grandes histórias de amor sem juízo nem remédio. Eu sofria e esperava, engolia em seco e perdoava e ele ia fazendo o que queria. É sabido que quando uma pessoa faz uma coisa uma vez, pode nunca mais voltar a fazer, mas se faz duas ou mais vezes, pode fazer o mesmo até ao fim da vida.
Nos anos seguintes ao fim da nossa história eu olhava para o passado incrédula com tudo o que acontecera, sem perceber como aguentara tanta asneira. Mas o coração é um músculo, e o meu nasceu trienado. A vida encarregou-se de o apagar da pele, da cabeça e finalmente do último lugar possível, até o esquecer por completo.
Num instante os anos voaram, ele foi viver para Londres, passaram mais de duas décadas sem nos vermos. Eu casei uma vez e divorciei-me, ele tropeçou duas vezes nas cordas do matrimónio. E agora estava de novo à minha frente, com o mesmo sorriso. Os cabelos embranqueceram, os olhos ganharam lentes grossas como pára-choques, mas a voz era igual, com as mesmas entoações, o mesmo entusiasmo, o mesmo charme.
Deixo-me ir na conversa e sinto-me em casa, mas desta vez vai ser diferente. Não mais este rapaz bem-parecido e sedutor irá partir o meu coração como naquele maldito verão que fiquei sem chão quando ele apareceu na Ericeira com uma sueca ao tiracolo igual à loira dos Abba, a quem dava beijos e abraços na minha frente, como seu eu fosse cega e estúpida, sem respeito pela minha tristeza.
No inverno seguinte os meus pais mudaram de casa, fiz novos amigos e troquei os ventos dos Oeste pelo calor tórrido da Praia Verde. Ainda assim, demorei alguns anos a esquecê-lo. Quando soube por um amigo comum que se tinha casado, tive um ataque de vómitos e chorei durante duas horas.
Tudo passa, tudo se esquece, tudo se apaga. De sete em sete anos o corpo consegue alterar todo o seu complexo sistema celular e uma pessoa já não é a mesma pessoa. Eu tinha 22 anos quando ele me trocou pela Miss Abba e 24 quando casaram. Agora a Miss Abba vive em Estocolmo e ele está de novo sentado a jantar comigo como se o tempo não tivesse passado, a falar dos filhos e do presente, das vinhas e do jardim, do solar e da mãe que sempre lhe disse que se devia ter casado comigo. A conversa perde-se no tempo, cinco minutos depois passaram cinco horas, o restaurante está vazio e o meu coração bate um bocadinho mais depressa.
- E agora? O que fazemos a seguir? – pergunta o meu amor antigo, com os olhos a brilhar.
- Agora levas-me a casa e quando quiseres ser meu namorado, telefonas-me e pedes-me em casamento – respondi.
Ele deu-me a mão e guiou em silêncio pela cidade. Era o que lhe devia ter dito quando tinha 22 anos, mas não consegui.
Afinal, nunca é tarde para corrigir a rota.