'
FLASH!
Verão 2025
Compre aqui em Epaper
Margarida Rebelo Pinto
Margarida Rebelo Pinto Pessoas Como Nós

Notícia

Nunca é tarde

Agora a miss Abba vive em Estocolmo e ele está de novo sentado a jantar comigo como se o tempo não tivesse passado, a falar dos filhos e do presente, das vinhas e do jardim, do solar e da mãe que sempre lhe disse que se devia ter casado comigo.
08 de junho de 2018 às 16:22
Vinhas, Dão, Quinta dos Carvalhais, Grão Vasco, Sogrape, Fornos de Algodres
Vinhas, Dão, Quinta dos Carvalhais, Grão Vasco, Sogrape, Fornos de Algodres Foto: Cofina Media

- Eu tenho de te pedir desculpa por tudo o que aconteceu - disse o Gonçalo com o mesmo sorriso que me deu a volta à cabeça em 1992.

– E espero do fundo do coração que consigas perdoar-me, porque sempre gostei de ti, mas era miúdo e não sabia lidar contigo.

Passaram mais de 25 anos desde a última vez que nos sentámos à mesa e pedimos um vinho. Seguíamos sempre o mesmo ritual: o restaurante era conversado entre os dois, eu escolhia o jantar, ele dizia ao empregado "eu quero o mesmo que a senhora quiser", depois abria a carta dos vinhos e pedia a minha opinião por educação, porque de vinhos e de futebol nunca percebi nada. O Gonçalo nasceu para o néctar dos deuses, cresceram-lhe os dentes nas vinhas da família em terras do Dão que rodeiam um solar secular enfeitado a cantarias trabalhadas e jardins franceses. Apesar de ter estudado em Lisboa, nunca deixou de ser um bicho de campo. Depois do jantar voltávamos para a minha casa e fazíamos amor. No dia seguinte ele desparecia quando eu não queria e reaparecia sempre que já não o esperava.

Quando éramos miúdos eu chamava-lhe agrobeto e ele chamava-me Teresinha, com todo o carinho, talvez por ser o mesmo nome da mãe, que me tratou como sua filha até ao fim da vida. Eu vivia para respirar o ar dele e ele achava que eu era a miúda mais divertida do grupo. Eu sonhava com o estatuto de namorada oficial e ele achava que eu era um caso tórrido. Imaginava-me de véu e grinalda e ele imaginava-me de ligas e de saltos agulha.

Este disparate emocional durou demasiados anos, como é tão comum às grandes histórias de amor sem juízo nem remédio. Eu sofria e esperava, engolia em seco e perdoava e ele ia fazendo o que queria. É sabido que quando uma pessoa faz uma coisa uma vez, pode nunca mais voltar a fazer, mas se faz duas ou mais vezes, pode fazer o mesmo até ao fim da vida.

Nos anos seguintes ao fim da nossa história eu olhava para o passado incrédula com tudo o que acontecera, sem perceber como aguentara tanta asneira. Mas o coração é um músculo, e o meu nasceu trienado.  A vida encarregou-se de o apagar da pele, da cabeça e finalmente do último lugar possível, até o esquecer por completo.

Num instante os anos voaram, ele foi viver para Londres, passaram mais de duas décadas sem nos vermos. Eu casei uma vez e divorciei-me, ele tropeçou duas vezes nas cordas do matrimónio. E agora estava de novo à minha frente, com o mesmo sorriso. Os cabelos embranqueceram, os olhos ganharam lentes grossas como pára-choques, mas a voz era igual, com as mesmas entoações, o mesmo entusiasmo, o mesmo charme. 

Deixo-me ir na conversa e sinto-me em casa, mas desta vez vai ser diferente. Não mais este rapaz bem-parecido e sedutor irá partir o meu coração como naquele maldito verão que fiquei sem chão quando ele apareceu na Ericeira com uma sueca ao tiracolo igual à loira dos Abba, a quem dava beijos e abraços na minha frente, como seu eu fosse cega e estúpida, sem respeito pela minha tristeza. 

No inverno seguinte os meus pais mudaram de casa, fiz novos amigos e troquei os ventos dos Oeste pelo calor tórrido da Praia Verde. Ainda assim, demorei alguns anos a esquecê-lo. Quando soube por um amigo comum que se tinha casado, tive um ataque de vómitos e chorei durante duas horas. 

Tudo passa, tudo se esquece, tudo se apaga. De sete em sete anos o corpo consegue alterar todo o seu complexo sistema celular e uma pessoa já não é a mesma pessoa. Eu tinha 22 anos quando ele me trocou pela Miss Abba e 24 quando casaram. Agora a Miss Abba vive em Estocolmo e ele está de novo sentado a jantar comigo como se o tempo não tivesse passado, a falar dos filhos e do presente, das vinhas e do jardim, do solar e da mãe que sempre lhe disse que se devia ter casado comigo. A conversa perde-se no tempo, cinco minutos depois passaram cinco horas, o restaurante está vazio e o meu coração bate um bocadinho mais depressa.

- E agora? O que fazemos a seguir? – pergunta o meu amor antigo, com os olhos a brilhar.

- Agora levas-me a casa e quando quiseres ser meu namorado, telefonas-me e pedes-me em casamento – respondi.

Ele deu-me a mão e guiou em silêncio pela cidade. Era o que lhe devia ter dito quando tinha 22 anos, mas não consegui.

Afinal, nunca é tarde para corrigir a rota.

Leia também
Leia também
Leia também

você vai gostar de...

Mais notícias de Pessoas Como Nós

A menina Clarinha e eu

A menina Clarinha e eu

Não sei quantas vezes tentei esquecer-te, talvez menos do que tu e mais do que o meu coração aguenta, a única que sinto é que, cada vez que a dou espaço à razão, o meu coração começa a encolher-se como um bolo sem fermento, a vida fica sem açúcar e os dias sem sabor.
Mergulhar no futuro

Mergulhar no futuro

Agora, enquanto a ameaça da pandemia pairar sobre Portugal e o mundo, espero pacientemente por aquele momento mágico em que vou poder voltar a mergulhar no mar. A vida ensinou-me a mergulhar no futuro, mesmo quando o futuro é um lugar vago e incerto.
Com cinco letras apenas

Com cinco letras apenas

É engraçado como as palavras mais belas e mais importantes têm três, quatro ou cinco letras. Mãe, pai, avô, avó, tio, tia, filho, paz, saúde, sonho, amor, fado. Beijo, abraço, toque, sim, não, já, agora, calma, vem, fica.
Claras em Castelo

Claras em Castelo

Estar fechada em casa não me custa, o que me custa é não ver o meu filho e os meus pais, as minhas sobrinhas e os meus irmãos, as minha amigas e amigos. Na verdade, o que me custa ainda mais, é não acreditar que, quando a pandemia passar, as pessoas não vão mudar. Agora acreditam que sim, estão paralisadas pelo medo, mas são apenas boas intenções, porque as pessoas não mudam.

Subscrever Subscreva a newsletter e receba diariamente todas as noticias de forma confortável