
Voltei para a casa onde já vivi. Sete anos separam-me do dia em que fiz a mudança para o centro de Lisboa. Foi no ano da crise, o centro da cidade era então triste e pouco povoado. O bairro que escolhi respirava tristeza e desolação: lojas fechadas, andares devolutos, reconstrução de prédios parada e construção de novos deixada a meio. O jardim era sujo, mal frequentado e nada cuidado. As raízes das árvores rebentavam os passeios estreitos. Não havia ciclovias nem turistas. Ainda alguém se lembra dessa Lisboa triste, sorumbática, deprimida e abatida? Da Rua de São Paulo abandonada à má sorte? Do Chiado vazio ao domingo? De não ser preciso marcar mesa em restaurantes nem sequer ao sábado?
A pouco e pouco o mundo descobriu Lisboa. Começámos a ficar na moda. Explodiram os tuk-tuks, os turistas dos paquetes, os alugueres de curta duração. A pouco e pouco, Lisboa ficou inundada de forasteiros curiosos equipados com malas de rodinhas. Casais de todas as idades e famílias numerosas de mapa na mão e a cabeça no ar a admirar as nossas igrejas e fachadas, largos e praças, encantados com os becos e as escadinhas, com a sardinha e os santos populares, com a Nossa Senhora do Monte e com o Castelo, com a Villa Souza e a Villa Berta, com o jardim do Torel e com os nossos elevadores de várias cores e feitios. O de Santa Justa ganhou fama e fila de entrada. O mesmo aconteceu com o da Bica. O Adamastor começou enfim a sorrir aos turistas. Camões dá as boas-vindas, ufano e possante do alto do seu pedestal no largo que baptizou. Os restaurantes estão agora sempre cheio, os pastéis de nata da Manteigaria tornaram-se estrelas, os turistas lambem os dedos de regalo, o setor do turismo esfrega as mãos de alegria.
Nos bairros mais populares, mulheres de todo o mundo entram nos cabeleireiros e perguntam quanto custa lavar a cabeça, pintar as unhas, fazer depilação. Fomos invadidos pelo mundo, foi ótimo para Lisboa e um inferno para os lisboetas.
O meu bairro deixou de ser triste, tornou-se alegre, depois festivo, finalmente histérico, por isso fugi. Fugi do progresso, do bulício, da confusão. Fugi das ruas encardidas, do ruído incessante dos prédios em reconstrução, da cidade que se tornou insone e voltei para a minha casa de escritora com vista para o mar.
Aqui é tudo azul. Acordo e adormeço com passarinhos de muitas qualidades. As únicas vozes que oiço são as das crianças que brincam nos jardins que me rodeiam. Oiço as gaivotas, as sirenes dos navios, oiço o vento a brincar com as árvores e elas a rirem-se dele, as hortenses do jardim que conversam entre elas. Oiço os lamentos da palmeira solitária que perdeu a sua irmã e o latido dos cães do jardim da frente. Mas, mais importante do que tudo, oiço de novo o meu coração a bater, já longe da confusão e da tua imagem. À noite durmo sem os gritos dos bêbados nem o desenho da tua cara na almofada. E de manhã já não acordo a som dos martelos pneumáticos das obras do vizinho que me massacravam tanto como as tuas ausências.
É verdade que nesta casa também faltam as gargalhadas dos filhos quando eram pequenos, a a música de uma história para contar antes de adormecer, o silvo de uma bola a rodopiar no jardim. E faltam os abraços de todos aqueles a vida ou a morte levaram.
Mas voltar atrás é por vezes a única forma de seguir em frente. Voltar atrás, a esta mesma casa onde já vivi, foi o caminho certo para voltar a mim, a ser quem era, antes de ti. E aqui estou, serena e livre, em paz com o passado e de mão dada com o presente, até que a vida me dê a mão para construir um outro futuro.