
Escrevo esta crónica ao som da primeira música que fez disparar o meu coração. Sou filha do 25 de Abril, apaixonei-me antes do apogeu dos Pearl Jam e da explosão dos Aerosmith. Quer isto dizer que ainda sou do tempo dos slows. O slow foi a último truque de aproximação física antes da revolução sexual em Portugal que, ao contrário do que aconteceu em outros países da Europa, se deu de forma silenciosa e secreta, literalmente debaixo dos panos, com a compra à socapa de VHS pornográficas na Makro e alugueres envergonhados nos clubes de vídeo do bairro residente, antes da internet entrar para os lares lusos e do mundo.
A adolescência da geração os filhos do 25 de Abril foi a última a dançar slow e a gravar cassetes com músicas para namorar, curtir, andar na marmelada, e claro, para dançar agarradinhos, muitas vezes em festas de garagem, com papel celofane encarnado a embrulhar os abat-jours e rondas policiais regulares de um ou dois adultos pelo perímetro para verificar se a malta não se estava a esticar. É claro que a malta se esticava, mas não era ali. Era dentro dos carros num lugar sossegado com vista para o mar, ou em casas onde os pais não estavam. Uma das frases que me ficou da adolescência foi "a mãe dela é hospedeira", o que queria dizer que "ela" passava muito tempo sozinha em casa. Naquela época, em que a liberdade sexual ainda doseada a conta-gotas, todos os rapazes sonhavam com uma miúda cuja mãe fosse funcionária da TAP.
Voltemos ao slow em questão que inspira as linhas que escrevo. Ouvi-o pela primeira vez em casa de uns amigos, numa festa de aniversário, eu tinha 13 anos e apaixonei-me por um rapaz de 14 que se chamava João, dono de um sorriso rasgado, caracóis fartos e uns olhos verdes enormes, enfeitados a pestanas que pareciam toldos. O João dançou comigo mais do que com as outras miúdas e o meu coração despreparado para as lides da paixão ficou preso durante dois anos. Só aos 15 esqueci o pestanudo. A vida nunca mais nos cruzou, mas o primeiro slow que dançámos ficou gravado para sempre nas minhas cassetes BASF e no meu coração. 'If you leave me now', uma lamechice de primeira linha, apenas sumplantado pelas lamechices dos manos Gibb, uma coisa assim entre o ultra-romântico e super-piroso, que, como é sabido, acaba muitas vezes por ir dar ao mesmo.
"Se me deixares agora, levas a maior parte de mim, não bebé, por favor não vás, rapariga, por favor não vás, rapariga, só quero que fiques, E se me deixares agora, levas o meu coração, um amor como o nosso é difícil de encontrar, como podemos deixa-lo escapar, chegámos demasiado longe para deixar tudo para trás, como podemos acabar assim, quando o amanhã chegar e ambos lamentarmos as coisas que dissemos hoje". Uma melodia melosa e harmoniosa, aprimorada com um arranjo de violinos em pano de fundo, o refrão reforçado em falsete, conseguem imaginar algo mais piroso? Nem mais delicioso. Para quem nunca ouviu, é dos Chicago, um grupo de rapazes barbudos e bem-intencionados do estado de Illianois, final da década de 70.
Nas décadas seguintes a denominação slow foi substituída por balada, mas tal designação nunca me convenceu. Balada era a de Hill Street com o agente Frank Furillo e a sua eterna paixão Verónica Hamel, os dois sempre de revólver à cintura prontos para salvar o mundo, enquanto davam beijos sofridos e apaixonados nos fundos da esquadra de polícia.
Estou a tentar lembrar-me da última vez que dancei slow e não consigo. Não consigo lembrar-me da última vez que comi um Epá com pastilha no fundo do cone de plástico, que cheguei a casa tão tarde que fui comprar pão quente, que gravei uma cassete BASF, que saboreei uma sombrinha de chocolate da Regina ou que vi uma bola de Nivea gigante na praia. Mas irei sempre lembrar-me do sorriso iluminado da minha primeira paixão e da indiscritível sensação de sentir 30 000 cavalos a galopar no peito pela primeira vez na vida, aos 13 anos, ao som dos Chicago.
É por essa e por outras que não posso ouvir John Mayer.