
Estas coisas acontecem quase sempre por sorte ou por acaso, o que às vezes é a mesma coisa e outras, o seu contrário. Eu vinha a guiar de regresso a casa numa tarde chuvosa quando o trânsito me fez mudar a estação de rádio e parar na Antena 2. Bastaram-me poucos minutos para reconhecer um dos meus concertos de piano preferidos de Beethoven e logo ali viajei até à minha infância quando usava totós, óculos de massa e aparelho nos dentes.
Oiço música clássica desde que me conheço. O meu querido pai entretinha os filhos ensinando-os a ouvir música clássica, porque uma coisa é ouvir, outra é saber ouvir. Saber o que é uma sinfonia, um concerto ou uma suite, uma abertura ou uma ária, saber distinguir os instrumentos de uma orquestra, saborear as pausas que dão mais ímpeto ao andamento seguinte, saber reconhecer a alegria inconfundível de Mozart, a profundidade única de Beethoven, a beleza espiritual de Brahms, a métrica rígida de Bach, (quase sempre um chato, mas tudo bem) a leveza de Haydn, a tragédia pungente de algumas sinfonias de Tchaikovsky, o o drama sereno dos concertos de piano de Rachmaninov, a tristeza de Chopin nos seus noturnos tão soturnos, a imaginação apoteótica de Dvorak e por aí fora.
Ter um pai melómano é como ter um tesouro debaixo do colchão, e os meus dois irmãos e eu percebemos isso muito cedo. Por isso, quando ouvi o anúncio do mesmo concerto de Beethoven nessa mesma noite, dei meia volta na autoestrada e regressei ao centro da cidade, na esperança de conseguir um bilhete.
Passei um serão de sonho, mergulhada num deleite tranquilo, todo ele envolto em leveza, como quem flutua. A pianista era muito bonita, de cabelo curto e batom escarlate, com um vestido comprido preto que lhe assentava como uma luva. A dança estonteante dos seus dedos no teclado teve em mim um efeito hipnótico e a melodia que aquelas mãos virtuosas produziam fez-me pensar na importância da virtude na vida.
O que seria de nós sem virtude? É a virtude que nos guia quando o coração dispara, quando a carne chama, quando a cabeça não consegue pensar. É a virtude que nos trava quando nos passa pela cabeça uma vingança calculada a quem deliberadamente tentou prejudicar-nos. É a virtude que nos faz ter paciência para aturar os amigos quando ficam chatos, os pais quando envelhecem e os filhos enquanto crescem. É a virtude que nos faz querer ser todos os dias pessoas melhores. Não é por acaso que na música o termo virtuoso é tão popular. Um músico virtuoso é alguém que põe todo o seu corpo, o seu coração e a sua alma na execução, e que por isso, além da técnica irrepreensível, se transcende através da entrega. Aquela pianista cujo nome desconheço, deixou uma orquestra e uma sala de teatro em suspenso com o seu talento. E eu senti-me a pairar perto do grande candelabro que enfeita o teto do teatro como se um par de asas invisíveis tivesse sempre feito parte da minha anatomia.
No regresso a casa, desliguei o rádio para que a minha memória não apagasse os momentos que vivera. Queremos sempre voltar ao lugar onde fomos felizes, desejamos eternizar os momentos mais belos e mais perfeitos da nossa existência porque sempre que o fazemos sentimos que estamos a agarrar a vida. Mas a única forma de agarrar a vida é viver o que queremos viver sem medo, e depois deixar que o tempo organize o resto. Apoia-te sempre, nunca te agarres, ensinou-me a querida Agustina há muitos anos. Olhei para os meus dedos pousados no volante, longos e ágeis como os da pianista. A minha música são as palavras, os meus concertos são os meus romances. Voltei a ter a certeza de que iria escrever até ao último dia da minha vida.