
Todos temos direito a uma segunda vida, a minha é na Cidade Maravilhosa.
É assim há tantos que já nem me lembro. Sempre que o frio se instala em Lisboa e a chuva começa a inundar o ânimo dos alfacinhas, arrumo meia dúzia de vestidos e um par de havaianas numa mala de cabine e aproveito as asas de um avião para voltar a casa. Às vezes adio o regresso, imagino outros destinos, mas o Rio vence-me sempre e lá vou toda inteira abraçar o Redentor.
O Rio é a minha segunda casa, a minha cidade do coração. A primeira vez que senti tão inexplicável ligação foi há muitos anos, quando me apaixonei por um encenador brilhante com um futuro promissor que me fez comprar a obra completa da Clarice Lispector, e se houve escritora que mudou a minha vida foi ela. Ela e o Rio, a cidade mais mágica do mundo onde no mesmo dia se pode ir à praia, beber um copo, ver uma peça de teatro e ir às compras, tudo a pé. O Rio da garota de Ipanema, dos meninos do rio, do Tom Jobim e do João Gilberto, do Jardim Botânico e do Parque Lage, do Cristo Redentor e dos bares da Lapa, do Bondinho que sobe o Pão de Açúcar, das velhas chiques Leblon e do ratos de praia que vivem no Vidigal.
O Rio com as ondas batidas e o mar revolto, os vendedores de queijo coalho e de biscoito Globo, dos barracos e dos côcos, das lanchonetes e dos botecos, da Lagoa e da Baía de Guanabara,dos bares do Baixo Gávea onde danço forró às quartas. O Rio da feira hippie na Praça General Osório aos domingos, o Rio dos sucos vitamina e do pão de queijo vendido às meias dúzias, quanto mais pequeno mais saboroso, do calçadão com empedrado ondulado e a Avenida Vieira Souto oferecida aos domingos a transeuntes e skaters. O Rio de Nelson Rodrigues com a suas mulheres infiéis ou moribundas, de Ruben Fonseca e os seus mistérios policiais, a cidade submersa que Chico Buarque canta baixinho como só os cariocas sabem.
Eu podia ter tido uma segunda vida no Rio, podia ter casado por lá e criado dois ou três guris, viver no Leblon a duas quadras da praia, quem sabe teria à mesma sido escritora, e quando visitasse Lisboa talvez sentisse a mesma nostalgia de uma outra vida igual à que me assola o coração sempre que chego ao Posto 10, como cantava Vinicius quando Ipanema era só felicidade, só resta uma certeza, é preciso acabar de vez essa tristeza, é preciso inventar de novo o amor.