
Vi-te ontem de relance, a passar à porta do Tapas52.
Tinha ido jantar com a Paula, a única amiga que te conheceu. Geralmente sento-me de costas para a sala, mas desta vez preferi ficar virada para a rua. O restaurante tem a porta aberta e as janelas sem vidros. Foi depois de pedirmos um copo de tinto do Douro e de darmos o primeiro gole que passaste, a poucos metros de mim. Ias sozinho, ao mesmo tempo absorto e determinado, a passada grande e certa, própria de quem corre maratonas, o fato escuro de sempre – são vários, todos muito parecidos- e a clássica camisa branca. Adivinhei os sapatos e o perfume, o pequeno sinal no pescoço e os dentes brancos, alinhados como o teclado de um piano. Não consegui recordar o sorriso porque não me lembro quando foi a última vez que te vi sorrir. Não sei ao certo há quanto tempo foi, talvez durante o último abraço. Os abraços, dão-nos visão periférica, por momentos vês tudo como um camaleão, é maravilhoso.
Dei um salto na cadeira e um pequeno grito que assustou a Paula.
- O Miguel acabou de passar lá fora.
A Paula agarrou-me o pulso enquanto pousava o copo com medo de o entornar e disse com voz de comando:
- Deixa-te estar quieta, não vás atrás dele.
- Como se tivesse força nas pernas para me mexer – respondi. Era verdade. Num instante que não durou mais do que um segundo, o meu tronco desligou-se dos meus membros inferiores. Demorei quase uma hora a sentir que todos os músculos, nervos e ligamentos, órgãos, tecidos e pele novamente ligados. Se tivesses entrado, terias de te ter aproximado da mesa e inclinado para me cumprimentar. Só teria conseguido mexer-me do pescoço para cima, e mesmo assim sabe Deus. Sentia-me paralisada.
Durante muitas semanas, sempre que andava pela cidade, desejava secretamente encontrar-te por acaso. Sempre tive cuidado com a minha imagem, mas desde que deixei de te ver, redobrei a atenção com tudo, dos pés à cabeça estou sempre impecável. Demoro o tempo que for preciso até sair de casa com tudo certo. Como se fosse importante. Sei que não é, mas conheço-te: se nos encontrássemos, irias reparar em tudo. Sempre reparaste, até ao momento que deixaste de me ver. Primeiro ficaste surdo do coração, depois cegaste e agora nem sei se também perdeste a voz porque nunca mais a ouvi.
O teu passo elástico não me ia dar tempo de te seguir. Além disso, andei tantos meses atrás de ti que a ideia de correr pela rua significava descer o último degrau da minha dignidade. Na fecundação é o espermatozoide que tem de correr mais depressa do que os outros para penetrar o óvulo. O óvulo não se mexe. É a lei da Natureza, quem agir de forma contrária, nunca lhe conseguirá ganhar. E mesmo que, levada por um impulso descontrolado de te apanhar alguns metros à frente, o que faria a seguir? Agarrava-te por um braço tentava mais uma vez atrasar-te a vida? Perguntava-te porque deixaste de responder às minhas mensagens e de atender o telefone nas raríssimas tentativas que fiz para falar contigo? Ou ficava apenas parada a olhar para os teus olhos, à de um pedido de desculpas sussurrado a medo, como fazem os amantes apaixonados quando querem esquecer uma briga?
Talvez não disséssemos nada. É o mais certo. Faríamos perguntas triviais, como se o quotidiano fosse realmente importante e vencesse tudo. Mas tenho quase a certeza que daríamos um abraço apertado e silencioso, daqueles que aquecem o coração e nos emprestam olhos de camaleão. E então, talvez te visse sorrir outra vez. Seria bom.
Às vezes basta um abraço, um sorriso, um gesto de paz e de entendimento para tornar o mundo um lugar melhor. É tudo infinitamente mais simples do que parece. Basta querer.