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Notícia
The Mag - entrevista

Da fome na guerra às glórias nos palcos, do amor à única mulher que teve às sopas que leva para o jantar. Eis Ruy de Carvalho aos 95 anos, numa conversa feita de emoção

Com 95 anos de idade e 80 de carreira, Ruy de Carvalho fala da vida e obra, com a modéstia que lhe é característica. Fala do passado e do presente com orgulho, da vida como “um bem” e da morte como “uma certeza”.
Por Miguel Azevedo | 03 de março de 2022 às 22:39
RuY de Carvalho Foto: Cofina Media

Poucos segundos depois do telefone começar a tocar, Ruy de Carvalho atende-nos ainda com a voz rouca da manhã.

Diz-nos que acordou de propósito para fazer a entrevista e confidencia-nos, entre risos, que a fará a partir da cama, enfiado entre os lençóis. "Depois de terminar sou capaz de voltar a dormir mais um bocadinho". Diz que o tempo tem sido bom para si, que lhe deu os amigos, os filhos, os netos e os bisnetos que tanto ama. Levou-lhe o amor de uma vida é certo, mas continua a permitir-lhe fazer aquilo que mais gosta: representar.

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Aos 95 anos de idade, feitos no passado dia 1 de Março, Ruy de Carvalho vive sozinho, com as maleitas próprias da idade, mas ainda conduz e vai ao supermercado, "como qualquer dona de casa", graceja. No dia do seu aniversário foi surpreendido com um almoço organizado por familiares e amigos e à noite, depois da peça ‘A Ratoeira’ com a qual está em cena no Teatro Politeama, em Lisboa, foi condecorado por Marcelo Rebelo de Sousa.

A Ratoeira, com Ruy de Carvalho Foto: Cofina Media
A Ratoeira, com Ruy de Carvalho Foto: Cofina Media
A Ratoeira, com Ruy de Carvalho Foto: Cofina Media
A Ratoeira, com Ruy de Carvalho Foto: Cofina Media
A Ratoeira, com Ruy de Carvalho Foto: Cofina Media
A Ratoeira, com Ruy de Carvalho Foto: Cofina Media
A Ratoeira, com Ruy de Carvalho Foto: Cofina Media
A Ratoeira, com Ruy de Carvalho Foto: Cofina Media
A Ratoeira, com Ruy de Carvalho Foto: Cofina Media
A Ratoeira, com Ruy de Carvalho Foto: Cofina Media
A Ratoeira, com Ruy de Carvalho Foto: Cofina Media
A Ratoeira, com Ruy de Carvalho Foto: Cofina Media
A Ratoeira, com Ruy de Carvalho Foto: Cofina Media
A Ratoeira, com Ruy de Carvalho Foto: Cofina Media
A Ratoeira, com Ruy de Carvalho Foto: Cofina Media
A Ratoeira, com Ruy de Carvalho Foto: Cofina Media
Flash
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Nascido em Lisboa, em 1927, iniciou-se no teatro, como amador, em 1942, no Grupo da Mocidade Portuguesa com a peça ‘O Jogo para o Natal de Cristo’ com encenação de Ribeirinho e estreou-se profissionalmente, em 1947, no Teatro Nacional na comédia ‘Rapazes de Hoje’. De lá para cá, fez também rádio, cinema e televisão, sendo presença assídua no pequeno ecrã desde a primeira telenovela portuguesa ‘Vila Faia’ (já faz parte do elenco da próxima novela da SIC ‘Por Ti’, a estrear brevemente). É uma das figuras mais acarinhados do público, uma referência e ele próprio uma instituição do teatro em Portugal. O pretexto para uma entrevista onde se fala de vida e morte, amizade e amor, pandemia e guerra.

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Senhoras e senhores tem a palavra o segundo ator mais velho do Mundo em atividade.        

Ruy de Carvalho Foto: arquivo

Que relação tem com o tempo alguém que já soma 95 anos de idade?

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Já vivi de facto muitos anos, mas o tempo tem sido bom e generoso para mim. Este número dos 95 anos não me assusta nada, estou acordado, vivo, a trabalhar, bom da cabeça e ainda com uma memória que não é má (risos). Também estou bem fisicamente embora tenha tido uma hérnia discal que já me obrigou a ser operado. O que valorizo é o facto de aos 95 anos ser o ator mais velho em atividade em Portugal. E tanto quanto sei sou o segundo mais velho no mundo.

Mas o que é que a idade traz e leva?

A idade traz muita coisa, muita riqueza, experiência, filhos, netos, bisnetos, amigos e quando há paz, traz amor. Infelizmente estamos a assistir a esta guerra que eu julguei que não ia voltar a ver. Como é possível que ainda hoje, no Séc.XXI, os homens lutem estupidamente? Como é que ainda existem países que querem mandar nos outros? E depois chamam fascistas e nazis aos que gostam, querem e defendem a democracia.

MEMÓRIAS DA GUERRA 

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E o Ruy de Carvalho ainda se deve lembrar bem da II Guerra Mundial!

Sim, passei muita fominha. Não havia praticamente nada para comer. Comíamos coisas inconcebíveis como bifes de baleia. Na altura da guerra até havia um anúncio com um slogan que dizia: 'Ao almoço, ao jantar e à ceia, coma carne da baleia" (risos). Nem sequer havia açúcar, mas uma coisa muito esquisita na vez dele. E pão era apenas uma vez por semana. A guerra foi uma tragédia. Houve muita gente mobilizada.

Passou por vários períodos da vida social e política portuguesa? Algum o marcou em especial? Como foi para si, por exemplo, o período da ditadura de que muitos atores e músicos se queixam por causa da censura?

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Nasci em 1927 e vivi durante muitos anos a censura. Senti-a bem de perto. Aquilo era uma estupidez e era altamente revoltante, censurar o talento dos outros, era algo que não fazia sentido. Fui impedido de representar muitas vezes. Foi um momento muito mau da nossa vida coletiva.

"[Durante a guerra] passei muita fominha. Não havia praticamente nada para comer. Comíamos coisas inconcebíveis como bifes de baleia. Pão era apenas uma vez por semana."

No dia do seu aniversário, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa Carlos Moedas, dizia que o Ruy de Carvalho "mudou o nosso mundo". O que acha que a generalidade das pessoas pensa sobre si? 

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Essas são obviamente palavras que me honram muito. Se as pessoas acham que eu mudei o mundo para melhor, eu não podia estar mais orgulhoso. Mas quem me dera ter essa capacidade, para poder ver as pessoas de mãos dadas e amigas. O que eu espero é que esta pandemia tenha trazido um bocadinho disso, o regresso às coisas do espírito e à riqueza cultural, ao amor e à amizade, que são as coisas mais preciosas que existem. 

NA INTIMIDADE

As pessoas conhecem mais o ator do que o homem. Como é a vida do Ruy de Carvalho fora dos palcos, o que gosta de fazer? Acorda cedo, deita-se tarde?

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Os meus horários dependem muito do trabalho que tenha. Mas sim, geralmente deito-me tarde porque gosto muito de ficar a ler à noite e de ouvir música. Mas se tenho trabalho e chego cansado a casa, vou logo direto para a cama. Faço os horários que quero porque vivo sozinho. Tenho uma senhora, que é a minha governanta, que trata de mim, mas que neste momento, coitada, até está doente e não me tem podido ajudar muito. É uma senhora com quem tenho uma amizade muito grande e que me trata como se fosse um filho. Como eu costumo dizer, sou o governado dela (risos).    

Mas é o Ruy que faz as compras para casa e tudo?

Sim, sim, eu faço a vida normal que qualquer dona de casa faz (risos) e como tal sou eu que faço questão de ir ao supermercado. Ainda guio e tenho dois carritos, um Smart e um Volvo já velhotes. Compro muitos vegetais, muitas vezes sopas já feitas e às vezes faço eu em casa, daquelas da knorr.  

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"Tenho uma senhora, que é a minha governanta, e que me trata como se fosse um filho. Sou eu que faço questão de ir ao supermercado. Ainda guio e tenho dois carritos, um Smart e um Volvo já velhotes."

Havia alguém que dizia que um ator é um inconformado com a vida e que por isso vive outras vidas no palco. O Ruy é uma pessoa feliz com a vida que tem tido?

Eu não podia ser mais feliz porque faço aquilo que gosto. Ainda hoje digo que sou ator amador profissional. Não há nada mais bonito do que gostar de cultura: teatro, música, bailado, literatura, etc tudo é cultura. Para mim até o gostar da natureza é cultura, quer nos traga chuva ou sol. 

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Aniversário de Ruy de Carvalho Foto: Cofina Media
Aniversário de Ruy de Carvalho Foto: Cofina Media
Aniversário de Ruy de Carvalho Foto: Cofina Media
Aniversário de Ruy de Carvalho Foto: Cofina Media
Aniversário de Ruy de Carvalho Foto: Cofina Media
Aniversário de Ruy de Carvalho Foto: Cofina Media
Aniversário de Ruy de Carvalho Foto: Cofina Media

Atualmente está com uma peça em cena, mas o Ruy de Carvalho não pára, entre trabalhos, de teatro ou televisão. Quando é que descansa e quando é que tem férias?

No verão. Gosto muito do verão, mas daquele que permite descansar. Não gosto das praias cheias, tipo pastel de bacalhau (risos). Tenho uma casa no Algarve onde me encontro sempre com os meus filhos, os meus netos, bisnetos e sobrinhas. Tenho uma grande família que me estima, que me telefone muito e que está sempre desejosa de saber de mim.   

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E a família e os amigos são mesmo o melhor que levamos da vida!

Eu acho que sim, é o melhor que temos. A amizade para mim até é algo mais forte do que o amor. A amizade vem da desmultiplicação do amor. Por isso é que eu digo que perder os amigos é das coisas mais tristes que há.  

HOMEM DE UMA MULHER SÓ 

Mas já que fala de amor, o Ruy foi homem de uma mulher só (Ruth de Carvalho, de 1955 a 2007). Como é que neste meio dos espetáculos se consegue manter um casamento durante tantos anos?

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Eu consegui porque tive uma mulher extraordinária, que amava e por quem tive uma amizade profunda. Amei-a e dei seguimento a esse amor com amizade até ao fim. Quando se tem só o amor sexual não chega. 

O que é que acha que deu ao teatro e o teatro lhe deu a si?  

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O que dei ao teatro está comprovado nos prémios que tenho recebido. Felizmente têm-me homenageado em vida e não têm esperado que eu morra para me dizerem coisas bonitas. Eu não tenho vaidade nenhuma, gosto é de aperfeiçoar a maneira de viver. E gosto de ouvir os outros, gosto da democracia e da liberdade. Gosto de respeito. Confundir liberdade e democracia com libertinagem é muito feio. Quanto ao que o teatro me deu a mim, deu-me a minha vida. 

"Tive uma mulher extraordinária, que amava e por quem tive uma amizade profunda. Quando se tem só o amor sexual não chega."

Que encantos e mistérios ainda tem o palco para si?

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Cada palco tem o seu encanto e há muitos palcos diferentes por esse país e mundo fora. Os ambientes também são sempre diferentes, consoante as dimensões dos próprios teatros. 

Mas ainda há nervosismo antes de subir ao palco?

Não. Hoje tenho é respeito pelo trabalho que faço. Se os advogados, os engenheiros, os médicos e por aí fora andassem nervosos toda a vida, estávamos todos tramados (risos). O fundamental é ter jeito e amor por aquilo que se faz. 

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Ruy de Carvalho Foto: arquivo
Ruy de Carvalho Foto: arquivo
Ruy de Carvalho Foto: arquivo
Ruy de Carvalho Foto: arquivo
Ruy de Carvalho Foto: arquivo
Ruy de Carvalho Foto: arquivo
Ruy de Carvalho Foto: arquivo
Ruy de Carvalho Foto: arquivo
Ruy de Carvalho Foto: arquivo

Há quem diga que o destino de um ator está decidido antes mesmo de ele sair do berço. Acha que tudo isto lhe estava destinado?

Era capaz de estar. Se nos está destinada a morte, também nos está destinada a vida. As duas coisas existem: a vida que é um bem e a morte que é uma certeza. Estas são duas coisas que nos limitam. Eu não sei quando morro, mas sei que vou morrer um dia. Eu não tenho a certeza se tudo isto me estava destinado, mas sei que cresci num meio que era propício para que eu escolhesse a minha profissão, afinal tive irmãos atores e mãe pianista.    

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Marcelo Rebelo de Sousa condecorou-o no dia do seu aniversário com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, o máximo que se pode dar no domínio da Cultura. Que prémio gostava de ter lá em casa que nunca chegou a receber?

Eu nunca trabalhei para receber prémios, mas para servir os meus concidadãos da melhor forma que posso e sei. Claro que os prémios sabem bem, mas não são o fundamental. É curioso ter recebido este prémio das mãos do presidente Marcelo Rebelo de Sousa, porque conheci-o ainda muito novinho, em África, em 1969, porque ele era filho do Governador de Moçambique Baltazar Rebelo de Sousa.

Está agora em cena com a peça ‘A Ratoeira’ que é muito especial para si por já a ter feito há 60 anos!

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Sim. Na altura foi no teatro Monumental então com o Rogério Paulo, Paulo Renato, Maria Dulce, Lili Neves e o João Vilarett.  Na altura fazia de galã, hoje faço do reformado militar major Metcalf (risos). É uma peça que gosto muito e que me dá muito gozo representar porque sou um apaixonado por Agatha Christie. É uma grande dramaturga policial e uma grande escritora de teatro. Escreve primorosamente. 

Ainda por cima contracena com o seu neto Henrique Carvalho!

Sim.  Ele faz muito bem o papel que há uns anos era desempenhado pelo Paulo Renato. E claro que me dá um gozo especial contracenar com ele.

 

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