
'A Despedida de Ulisses' é um livro tramado. Daqueles que ora nos faz sorrir como nos faz sentir aquelas lágrimas parvas a brotar dos olhos. E porquê? Porque aquela história é a de todos nós, de uma forma ou de outra. Os que sonharam, os que desistiram, os que não desistiram e se reinventaram, os que viram partir, os que fizeram tudo por ficar. Nós. Os que passámos pelo ano 2020, 2021 e guardamos memórias. Algumas. As que queremos, as que nos marcaram, as parvas, as que nos fazem rir agora e aquelas que ainda hoje não acreditamos que tenham mesmo acontecido. O mundo deixou de ser redondo? "Fechou"? Parou de verdade? Parámos mesmo porque nos disseram que tinha de ser? Vimos os nossos partir, gritámos sem sermos ouvidos? Que raio se passou aqui, no planeta Terra, que raio se passa ainda, de forma mais suave, mais silenciosa, que marcas terríveis ficaram? Do isolamento. Da solidão. Da clausura. Do medo.
Ler 'A Despedida de Ulisses', de Francisco Moita Flores (editado pela Casa das Letras), é um ato de introspecção, de silêncios, se alguns sorrisos mas muitos mais questionamentos. Porque é a nossa vida que está ali "escarrapachada". Como aconteceu. Como a pandemia de covid-19 nos mudou e o que nos foi acontecendo.
Com Francisco Moita Flores, o autor de muitos e muitos títulos policiais, históricos e agora desta história que marca a História, quisemos tirar dúvidas. Para perceber se fomos nós que alucinámos ao longo de dois anos, se fomos os únicos ou se aconteceu mesmo.
As respostas estão aqui. Mas nada como ler o livro. E a seguir por tudo em questão, como convém a um ser humano que está vivo, pensa e se distingue dos restantes "animais".
"Decidi parar ali esta história que vos entrego sem acreditar em milagres". Esta frase fecha a introdução do seu livro, um livro nascido na pandemia, com as dores e as "loucuras"(como lhe chama) que todos vivemos nesses tempos. Podemos falar em "esses tempos" ou esses tempos ficaram para sempre, porque os milagres nunca aconteceram ?'Esses tempos' permanecem. A guerra veio sedimentá-los. Hoje estamos mais inseguros, menos confiantes no futuro, olhando com reserva quem nos comanda. Hoje sabemos que não aconteceu milagre nenhum. Foi mais um trecho de propaganda barata que confundiu aquela diminuição dos números da pandemia com grandes vitórias morais e políticos. Sabemos agora, aquilo que veio a seguir. Uma formidável onda de contágios, de mortos, de hospitalizados, que mandaram para as urtigas o 'milagre'. Foi uma fanfarronice que pagámos caro. Nada estava terminado. Pelo contrário, após as férias de 2021, desabou o inferno sobre o País.
O Ulisses, personagem principal, o homem que quando está à beira de viver o sonho, entra no inferno, é a metáfora dos nossos maiores pesadelos – a falta de esperança. Foi isso que estes tempos nos roubaram – a esperança? Ou ensinaram-nos a encarar a vida de forma mais pragmática?A pandemia, assim como a guerra, estão a provocar sérios danos na esperança. Não direi que estamos mais pragmáticos. Talvez mais conformistas. Mais complacentes. Até mais medrosos. O futuro não tem inscritos raios de sol. Os combustíveis subiram para limites inimagináveis e aceitámos. Os bens essenciais aumentam a olhos vistos e não há um único protesto. Os salários degradam-se e nós conformamo-nos com a retórica vã, vazia, que afasta a palavra austeridade. Discute-se a palavra para fins político-partidários e, no final, estamos piores em todos os níveis da nossa vida.
"Os combustíveis subiram para limites inimagináveis e aceitámos. Os bens essenciais aumentam a olhos vistos e não há um único protesto. Os salários degradam-se e nós conformamo-nos" Ao mesmo tempo há um tom de comédia em toda a história, como se nos ríssemos de nós próprios ao recordar coisas que se passaram connosco. Hoje, quando olha a história e recorda esse tempo, ainda se ri? Ou dá pena da nossa ignorância ?
Ao mesmo tempo há um tom de comédia em toda a história, como se nos ríssemos de nós próprios ao recordar coisas que se passaram connosco. Hoje, quando olha a história e recorda esse tempo, ainda se ri? Ou dá pena da nossa ignorância ?
E por falar em trágico-comédia… Há uma crítica feroz aos governantes (mundiais), à comunicação manipulada, à contra-informação e informação a belprazer do que é conveniente veicular. Como se fossemos marionetas de jogo cujas regras nunca se conheceram. Estou a exagerar nesta análise?Não, não está. Confinados, sozinhos, fechados ao Mundo, com os direitos constitucionais suspensos, fomos cobaias e vítimas de um enorme complexo de manipulação e controlo, como se estivéssemos numa marcha forçada para o Admirável Mundo Novo, de Huxley. O pensamento crítico transformou-se em indignações efémeras, a avaliação da situação, por maior bom senso que tivesse (e muitas vezes não teve) foi sujeita a todos os ataques, a maioria denunciando medo e ansiedade. A informação dissolveu-se na propaganda e na contra informação. Ainda hoje é assim, embora tendo a guerra como pano de fundo. É cada vez mais difícil saber onde está a verdade.
"Ainda estou para perceber, quando começámos a falar da pandemia, sem ela ainda ter chegado a Portugal, mas sabendo que seria uma doença do foro respiratório, o açambarcamento de papel higiénico, de latas de salsichas e de atum."
O desfecho (não quero ser 'spoiler' mas é impossível não falar nisto) é uma catarse do autor? Um ajuste de contas com a sua própria história, para descansar, enfim?Quando escrevi não dei conta desse aspeto mas reconheço que, agora, à distância é possível que tenham sido páginas de catarse perante o luto que estava a viver com a morte do meu pai por Covid
E às tantas uma personagem, a Margarida, diz (perdoe-me a linguagem mas estou a citar) "Puta que pariu esta merda toda, estou a farta!" Esta era (e é, ou não? ) o sentimento generalizado. E em seguida é citado o tão falado "milagre português"? Foi mais uma mentira? Ou um filme que vivemos sem perceber nada?Construí a Margarida para ser a voz do inconformismo. Que resiste ao preconceito, que admira a novidade, que exalta a capacidade de ser livre. Através dela, falei das minhas próprias inquietações e desencantos embora, talvez devido à idade, já me faltem forças para o protesto. Mas sendo a voz da sensatez, ela própria é escondida pela força do 'milagre', dos muitos 'milagres' que nos vendem todos os dias. Por outro lado, aquilo que vivemos foi bem real e sobre a realidade os protagonistas da nossa vida pública fizeram o melhor produto de ficção, facilmente consumível, rapidamente digerível, procurando quebrar a memória e a lucidez. A futilidade e o efémero venceram este combate pela alienação. Margarida é aquela que escapa a esta trajetória de embrutecimento intensivo e diário.
Hoje olha para trás – e para a obra – e não parece que viveu uma ficção?Sobre essa questão, acompanho o pensamento de Popper e Vargas Llosa. O pensamento crítico vai desvanecendo, submetido à ditadura do espetáculo. Estamos a construir um mundo ficcionado, um mundo de imagens, onde pouco importam o conhecimento, a cultura, a memória individual e coletiva. Estamos a ser atores de um magnífico espetáculo sobre o vazio, a nulidade, a incapacidade para olharmos uns para os outros e sermos solidários. O individualismo travestido de vedetismo, o namoro entre duas estrela de ocasião, a larga discussão sobre se aquele lance foi penálti, empurra-nos cada vez mais para o supérfluo, para a paixão instantânea, para acreditar que é na aparência que habita a substância das coisas. É a decadência no seu estado mais lastimável.
"Estamos a construir um mundo ficcionado, um mundo de imagens, onde pouco importam o conhecimento, a cultura, a memória individual e coletiva. Estamos a ser atores de um magnífico espetáculo sobre o vazio, a nulidade"
E finalmente: 'A Despedida de Ulisses' é absolutamente visual e cinematográfica. Já está vendida a obra? Quaando é que a podemos ver?
'A Despedida de Ulisses' não foi escrita com essa finalidade. Não sei se alguma vez será um produto cinematográfico. Por enquanto, é um romance sobre nós, sobre os nossos dias, sobre as nossas vidas.