
É com uma dedicatória a Eunice Munõz e a Rogério Samora que começa o novo filme do realizador Vicente Alves do Ó, 'Amadeo', sobre o pintor português Amadeo de Souza-Cardozo. Já em exibição nas salas portuguesas, este foi o último filme feito pela atriz que morreu a 15 de abril de 2022, aos 93 anos, e o penúltimo no qual participou o ator, que partiu prematuramente, de forma trágica, a 15 de dezembro de 2021, aos 62 anos.
Na história, Eunice desempenha o papel de avó "adorada" por quem Amadeo "tinha uma devoção total e absoluta", enquanto Rogério Samora veste o papel de pai "encorajador" do artista. Amadeo, "o homem que pintou o futuro", também ele partiu, curiosamente, de forma prematura, vítima de gripe espanhola, aos 30 anos, a 25 de outubro de 1918.
"Vicente nunca te esqueças deste dia. Quando estiveres em baixo ou pensares em desistir, lembra-te da Eunice neste dia (...)"
O realizador Vicente Alves do Ó guardará "para sempre", a experiência de se ter cruzado com Eunice e Rogério. "Foi uma lição de vida trabalhar com eles. Quando privamos com os verdadeiramente grandes aprendemos muito, nomeadamente a nunca perder a humildade perante a arte e o respeito perante o trabalho dos outros". Sobre Eunice Munõz, em particular, recorda a primeira vez que a atriz surgiu para gravar. "Quando chegou ao plateau, parecia que vinha fazer o seu primeiro filme. Estava feliz da vida porque ia fazer cinema, porque já estava com saudades. Eu com 50 anos e ela com 93, eu só dizia para mim: "Vicente nunca te esqueças deste dia. Quando estiveres em baixo ou pensares em desistir, lembra-te da Eunice neste dia, desta pessoa que já fez tudo o que havia para fazer e que está aqui como se fosse a primeira vez. Foi um prémio que eu recebi", confidencia à The Mag. "É importante nunca esquecer a capacidade de espanto e eu nunca me hei-de esquecer do seu olhar de espanto, da graciosidade, do nervosismo e da sua delicadeza".
"Confesso que quando me informaram do que tinha acontecido fiquei emocionalmente muito mal. Trabalhar com o Rogério foi mesmo muito bonito"
Já sobre Rogério Samora, Vicente Alves do Ó lembra um momento em particular. "Ele filmou connosco nos últimos dias e há uma das cenas na carpintaria, uma conversa entre pai e filho que nos emocionou muito a todos que estávamos presentes, porque era sobre a paternidade. E sei que aquilo tocou muito o Rogério. Eu que não fui pai, por exemplo, gostava muito de ter vivido aquele momento", diz o realizador que, como todos, foi apanhado de surpresa com a morte de Rogério Samora. "O que aconteceu com ele foi uma tragédia que ninguém estava à espera. Confesso que quando me informaram do que tinha acontecido fiquei emocionalmente muito mal. Trabalhar com o Rogério foi mesmo muito bonito".
Filmado por Lisboa, Sintra, Óbidos, Comporta, Caldas da Rainha e Costa Oeste, com um orçamento de cerca de "um milhão de euros", revela o realizador, 'Amadeo' contou com uma vasta equipa de 26 atores, entre os quais está também Rafael Morais que dá vida ao pintor português. O filme deparou-se com os constrangimentos impostos pelo fraco orçamento ("gostava muito, por exemplo, de ter ido filmar a Paris, mas como não foi possível tivemos de o fazer com efeitos digitais", conta), mas ainda ainda assim vai à minúcia de ter recriado a famosa exposição que Amadeo fez em 1916 no Salão de festas do Jardim Passos Manuel, onde hoje é o Coliseu do Porto. "Foi todo reproduzido em decor e todos os 114 quadros foram minuciosamente reproduzidos, pintados e emoldurados. "Para aquilo que é um filme português, isto é um passo em frente", diz.
O que é que o levou a interessar-se pela história do Amadeo de Souza-Cardozo?
O que me despertou o interesse, mais do que a obra que eu já conhecia, foi mesmo a vida dele. Em novembro de 2016 estava no Porto e estava a passar à frente do Museu Soares dos Reis e vi que estava patente uma exposição sobre o Amadeo a propósito do centenário da grande exposição que ele fez em 1916 que é retratada no filme. Eu entrei, visitei e vi umas citações das suas cartas e da única entrevista que se conhece que eram frases que comunicavam muito comigo.
Como assim?
Foram frases que me espantaram pela sua audácia, coragem e diferença. Quando saí de lá, fui a correr comprar a fotobiografia e a partir daí foi nascendo a ideia. Comprei a biografia, fui atrás de historiadores e comecei a trabalhar no guião e no argumento para cinema. Não tinha cabimento contar a vida toda dele, mas tinha cabimento contar aqueles que eram momentos chave da sua histórias que nos aproximam do homem, do pintor e do seu destino que foi tão trágico aos 30 anos.
Durante quanto tempo andou em pesquisa para este projeto?
Comecei logo em novembro de 2016 e as filmagens começaram em novembro de 2019, portanto três anos. Durante esse espaço de tempo, o guião teve quase vinte versões, experimentei todas as possibilidades, trabalhei com duas historiadoras que foram acompanhando a escrita do argumento, contactei a família e tive a oportunidade, através da Gulbenkian, de visitar o espólio pessoal do Amadeo. Visitei a casa, o atelier e foram de facto três anos muito intensos, até chegar a um argumento que eu sentia que dizia exatamente aquilo que eu queria.
"O grande Portugal, só se apercebe do Amadeo a partir do momento em que a sua viúva vende o acervo à Gulbenkian e que faz uma grande exposição em 2006 que atrai quase 200 mil pessoas."
E o que é que queria?
Queria mostrar um homem corajoso, destemido e que vai à procura de uma vida diferente, da sua vocação e vai explorar o seu talento. Acho que ele é um exemplo tremendo para as novas gerações. Eu tinha que contar a história desta maneira. Ele fez uma coisa impensável. Depois da tal exposição de 1916, ele enfrenta o Portugal conservador do século XIX, moralista que olha para aquela exposição e não sabe lidar com aquilo. No filme, vou também até 1911, a uma noite primordial em que o Amadeo junta a elite parisiense na sua casa e conjuntamente com Modigliani [artista plástico italiano] mostra os seus primeiros trabalhos e se assume e se define como pintor. Finalmente, foco-me também no ano de 1918, o ano da morte, porque eu precisava de resgatar a razão pela qual este homem desaparece da história universal da arte moderna.
E Portugal só toma conhecimento dele bem mais tarde!
Sim, o País, o grande Portugal, só se apercebe do Amadeo a partir do momento em que a sua viúva vende o acervo à Gulbenkian e que faz uma grande exposição em 2006 que atrai quase 200 mil pessoas. Mas este filme é só o início porque ainda há muita coisa para fazer à volta do artista que precisamos de pôr outra vez no mundo.
O que descobriu sobre o Amadeo que mais o surpreendeu?
Descobri que ele tinha uma curiosidade e uma fome de mundo tremenda. Ele nunca estava contente com um quadro, ele chamava-lhe "quadritos", porque achava que podia fazer melhor. Era um artista sempre em construção, que se interroga continuamente e que é muito curioso. Nunca teve medo de arriscar. Primeiro Paris, depois provavelmente Nova Iorque e eu acredito que ele ia acabar no cinema. E há uma coisa que eu aprendi com ele: a menorizar a crítica e menorizar aquilo que nos pode ferir e abater.