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THE MAG - Weekend Caderno de Viagens

Na nova Comporta os 'pobrezinhos' não entram! Passámos um fim de semana no paraíso dos milionários e contamos-lhe onde deve ir e quanto vai pagar... se quiser ser um deles

Se o ar da Comporta se vendesse em elegantes frascos de vidro, de certeza que já se tinha transformado num caso sério de sucesso. Porque, de repente, toda a gente quer respirá-lo. A outrora pacata freguesia alentejana substituiu a Quinta do Lago como novo ponto de encontro dos muito ricos e deu por concluído o seu processo de 'evangelização' que dita que a cada tasca que feche portas, se abram duas ou três 'Guccis' ou restaurantes da moda no seu lugar. Perda de autenticidade ou um novo caminho? Há quem adore, há quem critique, mas já ninguém fica indiferente àquele que é chamado de Hamptons de Portugal, renascido pela mão de Paula Amorim.
Rute Lourenço
Rute Lourenço
08 de agosto de 2024 às 22:59
Paula Amorim abre pop up da Gucci no Carvalhal
Paula Amorim abre pop up da Gucci no Carvalhal

É sábado, dia 3 de agosto, e no centro da Comporta os estóicos alentejanos que ainda não desertaram da freguesia já foram obrigados a fechar o postigo para não levarem com o fumo dos escapes ou serem incomodados com o roncar das 'bombas' que, em pleno verão, fazem com que a localidade mais pareça uma pequena sucursal da Porsche.

As ruas estão, aliás, repletas de carros que não são nem Dacia nem Renault e no parque de estacionamento da Praia da Comporta ou do Pêgo qualquer Citroën morre de vergonha ao ser engolido por Jaguares, Teslas e desportivos que, toda a gente sabe, são a melhor escolha para encher de areia após um mergulho nas águas translúcidas daquele que se tornou no retiro preferido dos muito ricos em Portugal.

Começou nos tempos de Ricardo Salgado, quando as tascas alentejanas ainda não tinham fechado e o povo não tinha sido enxotado para fora da freguesia. As discrepâncias, como muitos diziam, davam uma certa piada ao local, onde tanto se via um septuagenário a beber um copo de aguardente logo pela fresca como miúdos loirinhos de cabelo à tigela a comerem torradas aparadas, ao lado dos pais, antes de irem para a praia. Onde é que isso já vai...

Algumas décadas depois, os Espírito Santo - que popularizaram a expressão 'brincar aos pobrezinhos' para se referirem àqueles dias de ócio e desprendimento de bens materiais que passavam no Alentejo - já não são donos e senhores da Comporta. Ricardo Salgado, a braços com a doença de Alzheimer, confinou num canto da memória as recordações desses tempos quase simplórios, e a passadeira vermelha foi estendida aos novos 'reis' da terra que, ao longo dos últimos anos, têm operado mudanças significativas na dinâmica da localidade (estendendo o raio de ação até ao Carvalhal).

A empresária Paula Amorim e o marido, Miguel Guedes de Sousa, tomaram o lugar dos Espírito Santo como novos donos daquilo tudo e dividem opiniões entre aqueles com quem falámos no fim de semana que passámos na Comporta. O casal está decidido a tornar o lugar no último reduto dos milionários em Portugal e todos os anos dá um novo passo nesse sentido. Em 2024 fê-lo ao abrir uma pop up (loja temporária) da Gucci no Carvalhal, o que quer dizer que de um lado da estrada temos a dependência bancária da Caixa de Crédito Agrícola e a Associação Recreativa a vender bifanas e do outro cestas de praia a 2300 euros na montra.

Quando lá passei, já depois da hora de almoço, a Gucci estava às moscas, como se não houvesse vontade ou interesse de descobrir quantos dígitos tem a peça de roupa mais barata que se vende na loja, que é vizinha da Fashion Clinic (uma multi-marcas de luxo criada por Paula Amorim) que, por sua vez, está ao lado do JNcQUOI Deli, o novo restaurante do grupo, que pretende ser assim uma espécie de tasca alentejana, mas sem 'pobres' nem sardinhas no pão, que deixam um cheiro péssimo na roupa... e as Gucci não se mantêm assim.

A Gucci, no Carvalhal
A Gucci, no Carvalhal

Mas há caracóis acompanhados por uma caneca rústica com duas torradas - não cair na tentação de ensopar no molho, se faz favor, é mesmo só para ver - bem como outros petiscos, como o panado de costeleta de vitela com tomatada alentejana, disponível por 42 euros. Ainda assim, o espaço parece estar a ter um arranque tímido e à tarde apenas os funcionários espreitavam à entrada para perceber se havia potenciais clientes a caminho. Não havia, mas não por falta de gente, andavam por outras paragens, que no pico do verão a Comporta nunca está vazia: é uma lufa-lufa de abracinhos, um só beijo, daqueles que não chegam a tocar na cara, e conversas de circunstância para saber como estão a correr os MBAs da Caetana ou da Luzinha ou o como foi o crisma da mais nova.

O JNcQUOI Deli
O JNcQUOI Deli

Não estou a exagerar, isto acontece, em primeiro lugar porque 'eles', os 'bem-nascidos', conhecem-se todos. Ora, isto é logo a primeira coisa capaz de 'encanitar' o comum dos mortais. Imaginem as vossas férias de sonho, visualizem a cena: estão com os pés de molho na praia, apenas com a preocupação de pensar se à tarde vão pedir uma mini ou um gin tónico na esplanada, quando ouvem mesmo atrás, como um bichanar, a voz da Carla da Contabilidade ou do Marco dos Recursos Humanos. E mais à frente, enquanto fazem a vossa caminhada higiénica, dão de caras com o porteiro do edifício onde trabalham ou um vizinho do vosso prédio. É só a mim que isto é coisa para me revolver as entranhas? Pois bem, 'eles' adoram, mais, se for preciso desviam caminho precisamente para se cruzarem, que este ano ainda não se tinham visto na espreguiçadeira (alugada a 30 euros) na praia de sempre ou enquanto compravam a bola de Berlim a três euros, porque se calhar as que se vendem na Comporta têm mais do que leite, farinha, manteiga e ovos, provavelmente algum cristal swarovski incrustrado. Para as famílias 'que importam', de três nomes pomposos, há qualquer coisa de mágico e especial em ver e ser-se visto pelos seus pares, um lampejo de afirmação, de fazer parte, de 'estão a ver, cá estamos mais um ano, continuamos ricos e bem na vida', que faz com que a Comporta seja, neste momento, o ponto que mais reluz em Portugal.

Na Comporta, é impossível não sentir que há sempre um 'jncquoi' de ostentação, que está presente em todos os movimentos, por mais singelos que pareçam: quando elas saem para 'queimar' na praia e eles com o saco de golf às costas, quando no Gomes, a velha mercearia que virou gourmet e onde, por exemplo, uma lata de Coca Cola custa 20 por cento mais do que nos supermercados do resto do país, uma 'tia', de óculos de sol, vai passando as compras do dia à empregada filipina, que, por sua vez, carrega o saco às costas, não vá uma tendinite atacar repentinamente a patroa, ou quando, na Caju, elas compram aos três e quatro vestidos porque se as férias duram 15 dias porque é que se vai correr o risco de repetir algum?

Mercearia Gomes
Mercearia Gomes
Mercearia Gomes
Mercearia Gomes

A cada ano que passa sente-se também que a classe média anda por lá, mas está apenas de visita, num toca e foge, que é como quem diz: o português comum não pode dormir na Comporta - onde a estadia num Sublime da vida vai dos 350 aos 2000 euros por noite - quando muito aluga uma casinha em Alcácer, passa 40 minutos no carro para ir e vir da praia, mas consegue partilhar umas fotografias no Instagram e mostrar-se no sítio onde toda a gente quer dizer que esteve, mesmo que no fundo não tenha estado mesmo lá. 

E quando baixamos uma camada no estrato social, estes já foram definitivamente arredados da Comporta. É fácil perceber porquê. Eu, que há anos era fã de Troia graças às praias quase desertas, de natureza em estado puro, reviro agora os olhos a cada 15 minutos naquela terra, onde tudo é 'o máximo', 'giríssimo', mas os preços são um 'horror': o meu cartão tem síncopes de cada vez que passa por um terminal multibanco para pagar um café ou um pequeno-almoço básico que, porém, vale por dois ou três.

Por exemplo, o Almo, em frente ao Gomes, foi alvo de uma lavagem de imagem ao longo dos últimos anos. Sabem aquelas 'extreme makeover' dos programas televisivos em que as pessoas num momento aparecem desgrenhadas e com os piores trapinhos de andar por casa e no plano seguinte já estão lindas e maravilhosas, com o cabelo às ondas, a dentição toda e dois tons de madeixas, ainda que por dentro sejam rigorosamente as mesmas? Assim foi com o Almo: num ano lá estava com a sua esplanada honesta e quando voltei tinha um cordão grosso a balançar à entrada e um convite para esperar pelo funcionário para sentar.

Na ementa, o tradicional pão de mistura foi substituído por um de fermentação lenta, que se pode acompanhar com manteiga de ovelha ou azeite biológico e dá cá '6 paus', que a massa mãe demora a levedar e este azeite é caro, mas faz bem à saúde.

Uns metros à frente, no Comporta Flavours - porque é que todos os novos espaços que abrem têm de ter nomes em inglês? - mantém-se a teoria de que se é exótico é caro e que se juntarmos ao tradicional lombinho de porco meia dúzia de lingueirões este já vale 23,80€ (em qualquer destino da Europa já se paga menos por uma refeição do que por ali). A juntar a isso, o serviço é, por natureza, mau, que os alentejanos já andam fartos até às orelhas de tanta 'cagança' e estão sem paciência para aturar turistas. Resultado: tudo é feito devagar, devagarinho, naquela máxima de se querem comer, esperem ou arrepiem caminho.

Comporta
Comporta

Quem aproveita a brecha são os estrangeiros que abrem hotéis de par em par (Christian Louboutin já está a construir novos na vizinha Melides), restaurantes fancy e compram chalés por 2 milhões, ou os restaurantes alfacinhas, como o Canalha, que no Verão fazem as malas para a Comporta, ainda que quem tenha mesmo dinheiro se esteja nas tintas para os problemas corriqueiros na restauração. "Quem anda aqui a comer nos restaurantes não são os ricos. Esses fazem festas em casa e convidam os amigos, têm um daqueles, como é que se diz, chef a cozinhar para eles", conta-nos uma alentejana de gema, que tem visto de tudo por ali e tem pena que a Comporta esteja a vender a sua identidade e tenha agora esta cancela invisível à entrada. "É só espanhóis cheios de dinheiro, mas para nós é uma tristeza", completa, apontando para umas 'chicas', que arrastam as suas chinelas da Loewe pela rua fora.

Ora se isto não é uma espécie de exclusão social digam-nos então o que é. A sensação que dá é que na Comporta não se quer ver o 'Zé Povinho', que ainda vai para lá levar doenças, e que a seleção é feita pela via do dinheiro: mesmo que queiram, as chamadas classes D ou E não podem lá entrar porque iriam espatifar em dois ou três dias o plafond de um mês. 

E foi assim que a Comporta, terra onde antes, tal como em Grândola, era o povo quem mais ordenava, substituiu a Quinta do Lago como o novo spot de eleição em Portugal. O Algarve continua a ser 'ótimo', mas já não é assim tão 'incrível' e, acima de tudo, já não é lá que as famílias mais influentes se juntam ou querem ser vistas.

A renovada loja Caju, no Carvalhal
A renovada loja Caju, no Carvalhal

Mudam-se os tempos e as vontades de quem tem (muito) dinheiro também se vão adaptando às tendências. E agora não há nada que seja mais espetacular do que ir para a Comporta, onde as praias são lindas, é verdade, mas a água fria como tudo, e tem cada vez menos o encanto característico que, em tempos, seduzia quem procurava arredar-se da confusão. Agora, tem quase tudo (inclusivamente a confusão) menos aquela autenticidade pura, que morre sempre um bocadinho mais de cada vez que uma tasca alentejana fecha portas porque os clientes preferem comer camarão do Alasca ou ostras ao preço do ouro. Nada contra, nada de errado, é apenas um género, precisamente aquele que define a nova Riviera dourada de Portugal.

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