
Nem trasladação, nem funeral. O corpo de José Eduardo dos Santos, de 79 anos, o ex-Presidente da República Popular de Angola que faleceu a 8 de julho, continua, mais de um mês após a sua morte, à guarda do Tribunal de Instrução de Barcelona, por indicação do Tribunal Superior de Justiça da Catalunha. O corpo do ex-governante foi autopsiado. A filha, Tchizé dos Santos, recorreu à justiça com acusações de suspeita de alegado envenenamento e negligência na assistência ao pai em vida, que teriam precipitado o trágico desfecho, mas sem grande sucesso até ao momento. Com uma medida cautelar, conseguiu apenas forçar a realização de exames forenses e criar um eterno adiar do problema.
O corpo encontra-se, desde então, conservado no Instituto de Medicina Legal y Ciencias Forenses de Cataluña, localizado na Ciutat de la Justícia de Barcelona, o equivalente ao Campus da Justiça de Lisboa, à espera que os magistrados se pronunciem.
CORPO GUARDADO, ATÉ QUE A LEI DETERMINE O SEU DESTINO
O Instituto, por ordem do tribunal, irá manter a custódia dos restos mortais de José Eduardo dos Santos, o que também permitirá realizar exames complementares, antes de o mesmo ser entregue a quem a lei espanhola vier a determinar. Os resultados preliminares da autópsia a Eduardo dos Santos apontam para a ocorrência de uma morte natural, devido a problemas de insuficiência cardíaca e grave infeção pulmonar, mas a justiça catalã já determinou que o corpo não poderá ser entregue à família até que sejam realizados exames forenses adicionais de despistagem. E também enquanto se mantiver o conflito de interesses entre familiares e o Governo angolano sobre a forma como ocorrerá o funeral.
Estas diligências legais decorrem enquanto os filhos do ex-Chefe de Estado, a madrasta Ana Paula Santos, membros do Governo e da Segurança Nacional de Angola, magistrados e advogados tentam na Justiça um acordo que permita a libertação do cadáver e a realização de um funeral que seja minimamente consensual para a família e viável para o Estado angolano, que se quer despedir do ex-estadista que governou o país durante 38 anos com uma cerimónia oficial digna.
DISPUTA FAMILIAR CRIA EMBARAÇO JUDICIAL E DIPLOMÁTICO EM ESPANHA
As duas fações da família Dos Santos disputam, na Vara de Família do Tribunal Civil da Catalunha, quem ficará com a guarda definitiva do corpo de José Eduardo dos Santos. De um lado está Tchizé dos Santos e os irmãos mais velhos, que se opõem à entrega dos restos mortais à ex-primeira dama e são contra a realização de um funeral de Estado, antes das Eleições Presidenciais, para evitar eventuais aproveitamentos políticos em solo angolano.
E do lado diametralmente oposto está a viúva Ana Paula dos Santos, e os três filhos em comum com Eduardo dos Santos, que reivindicam também o corpo e querem que este seja enterrado em Angola com a maior brevidade possível e cerimónias oficiais.
Enquanto aguardam a decisão dos tribunais para se poderem despedir do pai e marido, a atual mulher e os 10 filhos de Eduardo dos Santos vivem uma vida aparentemente normal, alguns deles, como Tchizé dos Santos, com muita exuberância e estardalhaço nas redes sociais.
Contrária à vontade do atual Presidente de Angola, João Lourenço, que quer realizar um funeral de Estado para homenagear o homem a quem sucedeu, a empresária Tchizé dos Santos tem-se batido na praça pública para que o corpo do pai não volte para África. E fá-lo em todos os canais possíveis, incluindo a plataforma Instagram, onde publica vídeos bastante animada... até há deles a promover marcas de roupa "em conta".
Tchizé, que anda a fazer campanha pelo líder da UNITA, Adalberto Costa Júnior, depois de ter sido deputada eleita pelo MPLA, afirma mesmo que o progenitor desejava ter um funeral privado e queria ser enterrado em Espanha, recusando a empresária da área do entretenimento com esta argumentação a concretização de um funeral de Estado em Angola "que possa favorecer o atual governo" em pleno período eleitoral.
A garantia de que José Eduardo dos Santos não foi envenenado foi dada à imprensa angolana pelo Procurador-Geral da República, Hélder Pitta Grós, que integra a delegação oficial do seu país e que em Espanha tem estado a tratar das burocracias em relação à legalidade do ex-Presidente em solo espanhol e do processo de trasladação do seu corpo. Os advogados de Tchizé dos Santos, por seu turno, garantiram, mas em declarações à Agência Lusa, que o juiz catalão que está a analisar o processo foi muito claro na afirmação de que o corpo só será entregue a uma das partes após a sua decisão, sendo que é possível que as autoridades judiciais queiram fazer novas audições à família antes de decidirem a quem entregam os restos mortais.
NEGOCIAÇÕES AO MAIS ALTO NÍVEL POR CAUSA DA "LEGALIDADE" DO FALECIDO
Entretanto, o Governo angolano contratou um escritório de advogados para apoiar o processo judicial da viúva de José Eduardo dos Santos no pedido em tribunal da guarda do corpo do ex-Presidente de Angola e tratar da delicada situação do ex-estadista, que, desde 2013, quando lhe foi diagnosticado um cancro na próstata, começou a ser acompanhado na clínica Teknon, em Barcelona, mas entrava no país sem visto ou passaporte normal.
O escritório de advogados pago pelo Governo de Angola está a defender os interesses de Ana Paula dos Santos e dos seus filhos e a representar o Estado angolano nas questões que envolvem a protecção diplomática e institucional de José Eduardo dos Santos, que não tinha nacionalidade espanhola, nem era residente em Espanha, viajando para este país com um passaporte diplomático, que expirava ao fim de 90 dias. "Era uma condição transitória para efeitos de assistência médica (desde 2013) e, por isso, o executivo está agora a tratar das questões institucionais e diplomáticas", adiantou à Agência Lusa fonte próxima de todo este intrincado processo.
PARA AJUDAR À FESTA, EDUARDO DOS SANTOS MORREU SEM TESTAMENTO
Dias depois do anuncio da sua morte, a Agência Lusa, que não foi desmentida, noticiou que o ex-Presidente José Eduardo dos Santos morreu sem deixar testamento, facto que dificulta ainda mais a tarefa da justiça espanhola na batalha legal que envolve Governo e a família desunida e desavinda. "Não existe testamento. Isso foi já confirmado pelos familiares e pelo chefe da escolta com quem confidenciou durante os últimos 33 anos", disse a mesma fonte próxima à Lusa, acrescentando: "Ele era muito pragmático e terá dado a cada um dos filhos aquilo que achava que cada um devia ter", chamando "cada um a seu tempo".
"Cada um dos filhos sabe perfeitamente o que ele deixou", acrescentou o interlocutor da Lusa, admitindo que "ainda muita água vai correr debaixo da ponte", já que o ex-Chefe de Estado não deixou por escrito a sua última vontade... e a viúva e os filhos não se vão entender.