O legado de Maria Teresa Horta. E como o mundo precisa de continuar a ler as suas palavras
Em tempo de desigualdades, a morte de Maria Teresa Horta recorda-nos da importância de darmos continuidade à sua jornada. Mulher, feminista, "desobediente", resistiu à censura e publicou sempre sem medos para que, a cada palavra escrita, uma mulher se pudesse antecipar.
Maria Teresa Horta morreu na última terça-feira, aos 87 anos, e talvez nunca como hoje as suas palavras precisem tanto de ser lidas. Foi sempre uma mulher anos luz à frente do seu tempo, que lutou pelas mulheres quando poucas se atreviam a fazê-lo. Infeliz no primeiro casamento, fugiu de casa mesmo que o marido a tenha trancado e tentado impedir que vivesse aquilo para que estava destinada: escrever, partilhar beleza, emancipar os seus pares femininos, abrindo-lhes portas, janelas para que se libertassem do cheiro a mofo, do que é instituído e pudessem viver sem amarras as suas existências.
A sua obra é vastíssima e a autora deixa-nos perto de 40 livros entre contos, poemas e ficção, que é urgente ler em tempos em que as desigualdades que se julgavam derrubadas continuam, afinal, a ser das grandes questões dos nossos dias.
Entre tudo o que nos deixa, é obrigatório (mas não só) o livro que ficou conhecido como o das 'Três Marias' – escrito em conjunto com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, sendo que Horta foi a última das três a morrer – 'Novas Cartas Portuguesas', publicado em 1971 e apreendido pela Pide por ofensas à moral. Como foram, aliás, tantos outros, entre contos eróticos, livros que retratavam o prazer feminino livre de pudor, numa censura que acabaria por atrasar a afirmação de Maria Teresa Horta como um dos grandes nomes da literatura portuguesa, mas não o impediu. Era inevitável.
Incluída no ano passado na lista da BBC que juntava as mulheres mais inspiradoras dos nossos dias, Maria Teresa Horta viu reconhecido o seu talento, também expresso na biografia escrita pela jornalista Patrícia Reis e cujo título poderia, na verdade, definir tudo aquilo que foi a sua vida: 'A Desobediente', editada pela Contraponto.
De quatro anos de conversas, Patrícia captou de forma exímia o perfil de uma mulher brilhante, indiferente ao que era mais conveniente, e que descreveria como uma pessoa sempre muito só.
"A Teresinha era uma mulher só. À sua maneira, cheia de mundo, com muitas solicitações, mil curiosidades, mas sempre só. Talvez por ter sido uma menina que viu a mãe sair da casa de família, abandonando o marido e as três filhas, aos nove anos de idade. Talvez por ter chocado com o pai que comentava: 'esta rapariga é muito estranha'", escreveu a jornalista num artigo publicado no 'Observador' já após a morte da escritora, onde conta que Maria Teresa Horta sonhava com um último livro e até já tinha tema, a solidão, mas nunca o chegou a concretizar, em tempos difíceis em que se mostrava mais ensimesmada depois de ter perdido aquele que era o seu grande amor, o segundo marido, o jornalista Luís de Barros, em 2019, com quem teria um filho e, mais tarde, tido a alegria de ver nascer netos e bisnetos.
Durante o seu percurso, Maria Teresa Horta foi a escritora sempre com um poema na ponta dos dedos – escrevia um por dia – mas também uma jornalista entregue à sua missão, tendo passado por redações como 'República', 'Diário de Lisboa', 'A Capital' ou 'Diário de Notícias'.
No entanto, em Portugal o seu talento custou a ser reconhecido, pecou por tardio, algo que a sua biógrafa atribui também ao atrevimento de uma mulher que teve a coragem de não ser consensual e de se estar nas tintas para o que esperavam dela: "A morte da Teresa é uma perda tremenda e todos a irão elogiar. Pena que não o tenham feito tanto em vida. O reconhecimento do seu génio foi tardio. Por ser mulher? Ela estava convicta de que ser feminista a prejudicava, disseram-lho muitas vezes, mas ela estava-se "nas tintas", falar em nome das mulheres, de todas nós, era mais importante do que ser reconhecida."