
Durante meses a fio, 'Atos de Desobediência' ainda não tinha nome e era apenas um documento perdido no portátil de Helena Magalhães, onde a escritora depositava pensamentos soltos e considerações. Estava a trabalhar naquele que julgava ser o sucessor de 'A Devastação', o seu último romance, quando percebeu que era, afinal, a história de Glória Brito que mais urgia ver a luz do dia. Mergulhou a fundo no universo da personagem, leu mais sobre filosofia e psicanálise para "dar mais corpo" à história e, às tantas, assume, deixou de saber onde terminava a vida de Glória e começava a sua. O livro - o quinto da escritora portuguesa - chegou esta semanas às livrarias, debaixo do selo de uma nova editora, a Asa, e mostra a versão mais madura de Helena Magalhães que, pela voz da sua nova personagem, mergulha numa reflexão profunda sobre o nosso lugar no mundo, ao mesmo tempo que narra a jornada de Glória, uma escritora a entrar nos seus 40 anos, que depois de ter saboreado o sucesso, se deparou com dois fracassos literários e tem à sua frente consecutivas páginas em branco, nas quais não faz ideia sobre qual a história que deve escrever a seguir.
"É um livro sobre crescimento pessoal, o impacto do trauma infantil na vida adulta e queria fazer uma dicotomia com a vítima perfeita / vítima questionável aos olhos do leitor, cada pessoa reage ao trauma de forma diferente (...) E depois há a forma como as mulheres se debatem com todos os papéis que temos de desempenhar e as minhas próprias questões existencialistas sobre o meu lugar enquanto mulher na escrita e no mundo. Talvez seja, por isso, o romance que mais acompanhou as minhas próprias mudanças pessoais, acabei de fazer 40 anos e sinto-me tão ambígua e defasada como a personagem", conta à FLASH! Helena Magalhães, que na obra lança um olhar acutilante sobre o mercado editorial português, nomeadamente o seu ainda "elitismo", sempre com um toque de humor apurado.
"Entrámos numa nova era em que o mercado e o digital permitiram esta brecha para uma mudança sem igual com a publicação de novas vozes, novas perspetivas, novos géneros literários, o que é uma lufada de ar fresco na nossa literatura tão encerrada em si mesma e que continua a ser marcada por uma forte elitização. Mas o panorama continua ainda muito obsoleto e estagnado, o que talvez seja o maior problema, não há espaço para que autores/as sem nome firmado e fora das chancelas mais consideradas consigam penetrar", considera.
Recorrendo ao tal humor, à hipérbole e ao exagero, Helena analisa de forma mordaz as mudanças de paradigma no mercado editorial, os sucessos instantâneos e a difícil jornada de um autor em Portugal. No entanto, confrontada sobre qual a forma que acha que o livro pode ser acolhido no segmento, não teme ferir susceptibilidades.
"Para mim a arte, nas suas diversas formas, tem de refletir, questionar e também criticar as estruturas sociais, políticas e culturais do seu tempo e já o fiz noutros livros, quer no 'Ferozes', quer no 'A Devastação', se neste último em que expus e critiquei os abusos sexuais nos lares católicos de raparigas, ninguém se sentiu incomodado ou se interessou assim tanto pelo assunto, não creio que uma sátira à hipocrisia do mercado literário português vá ferir suscetibilidades, não quando acho que está feita com humor, ironia e exagero."
No entanto, e apesar de a crítica ao meio ser um dos motores da nova publicação de Helena Magalhães, este é, por vezes, um parêntesis num livro tão duro quanto comovente, em que a personagem Glória nos mostra como tenta entender o seu caminho, que começou num bairro humilde, numa família com as suas lacunas, que marcaria para sempre a forma como se relacionaria com o outro. E, ponto chave, como é que os traumas do passado nos perseguem, até nos dispormos a enfrentá-los, compreendê-los e a viver com eles. Um livro que se lê num trago, mas com profundidade e que marca também uma mudança no perfil da autora, que começou com dois romances definidos como mais 'leves', como por exemplo 'Raparigas como Nós', e foi trilhando uma mudança, que acompanha as suas próprias leituras, maneira de estar na vida e gostos pessoais. Um caminho nem sempre fácil e no qual um dos grandes obstáculos que encontra é o preconceito.
"Continua a haver muito preconceito no nosso meio literário, os autores/as são engavetados e é muito difícil sair dessas gavetas onde somos encaixados e com as quais muitas vezes não nos identificamos porque nos castram. Claro que esta é a minha experiência, eu mudei de editora porque precisava insanamente de mudar de gaveta para manter viva a minha vontade de escrever, mas outros autores/as em circunstâncias iguais poderão não sentir na pele o mesmo preconceito. Mas isso também não me desanima, não escrevo para provar nada a ninguém nem com o objetivo de desafiar rótulos, se o fizesse corria o risco de tornar a minha escrita artificial e presa na sua missão."
Apesar de todos os 'ses', Helena Magalhães - que além de escritora é fundadora do maior clube do livro em Portugal, o Bookgang - admite que esta é a grande paixão que dá fôlego à sua vida, numa altura, em que, tal como a própria Glória, de 'Atos de Desobediência', questiona muitas vezes o seu lugar no mundo, na sociedade, e o seu papel enquanto mulher e escritora.
" O meu maior medo é um dia perder esta obsessão que me mantém viva porque ser escritor não é algo que se queira ser, acredito que é algo que não se pode evitar ser, que nos controla, nos estrangula, mas que no meu caso também me salva porque quando escrevo e penso e imagino, liberto-me do meu próprio corpo e das minhas limitações (...) Eu escrevo porque estou viva, mas também estou viva porque escrevo, é o que me move, às vezes escrevo movida pela raiva, outras pelo tesão, pela felicidade, pela tristeza, também pelo aborrecimento e pelo tédio, ou pela solidão, é a minha metralhadora, noutras vezes é o meu ventilador mecânico, o meu desfibrilhador, o meu ansiolítico, noutras é apenas algo que me deixa simplesmente animada e feliz, que me diverte."
O percurso tem as suas pedras e nem sempre para a autora é fácil encontrar motivação para o trilhar. "Houve momentos em que estava tão desiludida e me sentia tão fracassada que foi muito difícil manter a motivação, a sanidade e sair da cama todas as manhãs". No entanto, a tal força que a move faz com que não desista e que, no final, vença sempre o desejo de escrever uma próxima história. A próxima já está em curso, mas por agora é tempo de saborear os sucessos de 'Atos de Desobediência'.