"Tinha 14 anos quando entrei na Academia, rapidamente comecei a perceber que António Capelo tinha 'preferidos', os rapazes a quem insistia em dar massagens, a quem convidava para um copo. Alguns são hoje atores conhecidos, outros têm as vidas destruídas." O relato é apenas um entre dezenas, centenas de denúncias tornadas públicas através da conta de Instagram 'Não Tenhas Medo', criada por Mia Filipa que, hoje com 43 anos, se muniu de toda a coragem para dar a cara e verbalizar aquilo que lhe aconteceu quando estudava na Academia Contemporânea do Espetáculo (ACE), no Porto, numa altura em que nem sequer tinha atingido a maioridade: afirma ser uma das muitas vítimas do ator e encenador António Capelo, nome incontornável do teatro e da televisão, de 69 anos, escalado para a próxima novela da TVI 'Terra Firme'.
Após a denúncia, a atual candidata pelas listas do Bloco de Esquerda às eleições autárquicas do Porto criou a página e de repente choveram depoimentos no mesmo sentido que agora ganham força para que haja uma responsabilização face aos alegados anos de abuso. "Foi logo no primeiro ano. Primeiro eram umas piadinhas. Às vezes, quando passava por mim num sítio mais apertado, punha-me a mão no rabo, Era tipo 'ah, desculpa’, como se aquilo tivesse sido sem querer”, relata ao 'Público' a agora educadora, de 43 anos, que se encontra em processo de transição de género e era apenas mais um rapaz, com sonhos comuns à sua idade, quando entrou na escola de teatro do Porto.
Ao 'Observador' contou que o assédio teve início pouco depois de ter entrado na ACE, com António Capelo a mostrar-se sempre muito cúmplice e preocupado.
“Mostrou logo interesse em mim, metia-se comigo. Tinha uma atitude muito máscula, sempre a mandar umas boquinhas, a dar entender que sabia do que é que eu gostava [rapazes]. Dava-me livros. Eu ficava super entusiasmada de ter o diretor da escola tão preocupado, a dar-me atenção. Isso dava-me uma valorização. Depois começaram a surgir convites, umas bocas para ir a casa dele.”
Mia acabou por aceder a uns desses pedidos, 'embrulhados' na questão de que a RTP estava a fazer uma nova novela e que haveria a hipótese de a encaixarem na mesma. No entanto, o que aconteceria no apartamento, no centro do Porto, em nada teve a ver com essa hipotética possibilidade.
“Estava em casa dele e estávamos no sofá, a conversar, mas ele sempre com uns olhares lascivos em relação a mim, e a pôr-me a mão. Pegou na minha mão e pô-la em cima do pénis dele. Ele estava excitado e começou a esfregar. Depois aproximou-se para me beijar e eu cedi àquele beijo meio baboso. Lembro-me do perfume dele, que nunca mais esqueci. Até hoje não consigo estar perto de ninguém que use o mesmo perfume. É um perfume que me dá vómitos”, afirmou. “Depois, baixou as calças e pediu-me para lhe fazer sexo oral. Disse-me que o que podíamos ter podia ser algo muito especial e que podíamos ser grandes amigos", conta, acrescentando que, depois do ato sexual, Capelo a "despachou de casa".
Os encontros repetiram-se pelo menos por mais cinco vezes, com Mia muito jovem, na altura com 16 anos, a ter receio de como a sua nega seria interpretada. Porém, no segundo ano do curso ganhou coragem para se negar às investidas de Capelo, numa fase em que, refere, começou a ser vítima de bullying e humilhações por parte do ator. "Ele começou a ter uma atitude humilhante comigo. Passou de ser uma pessoa que me dava muita atenção para me ignorar completamente dentro da escola. Era desconfortável, dizia-me que eu não tinha corpo de ator, que tinha um corpo muito feminino, que era efeminado e que um ator não podia ter esses trejeitos. Tornou-se insuportável estar na escola. Sentia-me descartada da escola. O Pedro Aparício [então diretor da ACE], na altura companheiro do Capelo, também mudou o comportamento comigo”, diz ao 'Observador'.
Durante anos, viveu com o peso do abuso em silêncio, tinha vergonha de o verbalizar, sentia culpa e repulsa na mesma medida, mas perto dos 40, e numa altura diferente da sua vida, teve coragem de dar nome ao que tinha vivido, com a ajuda do seu terapeuta.
"Só com terapia pude verbalizar que o que tinha sofrido com António Capelo era abuso sexual”, explicou ao 'Público'.
Confrontado com as acusações, António Capelo nega-as com ferocidade, no entanto na página criada para a denúncia, todos os dias surgem novos relatos, anónimos – porque a vergonha ainda continua muito associada a esta questão – ou de quem vai para a frente e dá a cara não só para fazer justiça pela própria história, mas também para colocar um travão, mudar um paradigma que não termina na ACE.
Todos os relatos têm um denominador comum: os episódios de assédio ocorridos ou na própria escola ou em casa de ator, que convidava os alunos para lá irem a pretexto de trabalho. Ricardo, nome fictício, contou, por exemplo, ao 'Observador', como uma noite ficou a dormir em casa de Capelo e acordou a meio da noite com este a entrar na sua cama.
“Um dia acordei com ele dentro da minha cama e a meter-me a mão. Peguei nas minhas coisas e saí, ainda com a roupa por vestir. Nunca mais me esqueci.”
Segundo um outro testemunho, o denominador comum era o momento em que Capelo elegia os seus favoritos e os persuadia a momentos a solo. “Disse-me que tinha uma voz bonita e que tinha apenas de trabalhar algumas coisas de dicção. De repente, começou-me a tocar nas pernas e nos ombros e eu fiquei extremamente desconfortável. Levantei-me para sair, mas ele encostou-me à parede e começou a beijar-me o pescoço, tentou beijar-me a boca. Afastei-me e, quando tentei abrir a porta, percebi que estava trancada.”
Estes são apenas alguns dos relatos tornados públicos, mas há muitos mais numa toada que era conhecida de todos os que frequentavam a escola, onde o ambiente era, às tantas, descrito como tóxico e perturbador, sendo que a tenra idade dos alunos (compatível com um ensino secundário) é apontado como uma das razões para o silêncio, com estes a encontrarem-se expostos e vulneráveis ao assédio. Agora, foi atirada a primeira pedrada no charco para que o caso possa mudar de figura.
Face à polémica, a direção da escola de atores, composta por Pedro Aparício e Glória Cheio, demitiu-se. "A escola deve permanecer acima de qualquer controvérsia", fizeram saber em comunicado.