
Em 2001, Gonçalo Galvão Teles começou a seguir as pisadas do pai, Luís Galvão Teles, realizando e escrevendo para a SIC um telefilme de nome ‘Teorema de Pitágoras’. A comédia romântica contava com Patrícia Tavares e Pedro Granger nos papéis principais, num elenco com vários nomes conhecidos da ficção nacional como Fernanda Serrano, João Lagarto, Inês Castel-Branco ou Paula Neves. Aí, estreava-se também em longas-metragens um jovem ator de nome Filipe Duarte, após participações em séries e várias curtas-metragens.
Duas décadas e mais três projetos em conjunto depois, Gonçalo e Filipe reuniam-se para o ambicioso ‘Nunca Nada Aconteceu’, filme baseado em argumento de Luís Filipe Rocha e Tiago R. Santos, que chegou esta quinta-feira nas salas de cinema.
Por circunstâncias infelizes da vida, esta tornar-se-ia na derradeira aparição no ecrã de Filipe Duarte, devido ao seu falecimento em abril de 2020, vítima de um enfarte agudo do miocárdio, deixando em choque o mundo da ficção portuguesa, que perdeu um dos seus mais acarinhados membros.
Gravado antes do início da pandemia, ‘Nunca Nada Aconteceu’ estreou após quase um ano de espera em relação à data de original, resultado das complexidades exigidas na fase de pós-produção a um trabalho realizado numa época que deixou todo o globo em 'standby'. Em declarações à ‘The Mag’, o realizador Gonçalo Galvão Teles explicou a importância deste trabalho para si e a sua visão sobre como a partida do seu "companheiro de viagem" impactou a sua envolvência, tal como aquele que, a seu ver, seria o desejo do grande intérprete da nossa ficção que carinhosamente apelida de Pipo.
O TEMPO DAS COISAS
Depois de várias curtas-metragens, ‘O Outro Lado do Arco-Íris’, ‘Antes de Amanhã’, e ‘Senhor X’, o regresso às longas-metragens de Gonçalo Galvão Teles deu-se ao lado do pai, Luís Galvão Teles, em ‘Gelo’, de 2016 (que pode atualmente ser visto em Portugal através da plataforma de streaming Filmin). Depois, aventurou-se ao lado de Jorge Paixão da Costa no biográfico ‘Soldado Milhões’, de 2018, que foi depois "fatiado" para a série homónima transmitida pela RTP.
Em 'Nunca Nada Aconteceu', é possível acompanhar o desenrolar de três histórias distintas: António, viúvo que vai viver para a cidade junto do seu filho, Jorge, desempregado e cujo casamento se encontra em ruínas. Ao mesmo tempo, Pedro, o filho do casal, e os dois melhores amigos, Maria e Paulo, tentam encontrar um antídoto para as suas dúvidas existenciais.
O realizador mostrou-se acima de tudo feliz pela forma como reflete a sua perspetiva, agora mais "séria, contundente e profunda" sobre a Sétima Arte: "Este é o filme que eu sempre quis fazer, que acho que melhor me representa em termos de trabalho e da minha visão do cinema. Acabei por conseguir conjugar tudo aquilo que quis fazer: quer em termos de experimentação formal, de trabalho com os atores, de desenvolvimento profundo das personagens, de tentar, enfim, de alguma forma, encontrar verdade e encontrar vida através do cinema", começou por nos dizer Gonçalo Galvão Teles.
Questionado sobre como lidou com a demora do filme em chegar às salas, em relação à altura em que foi gravado, o cineasta foi claro: "Lidei bem, estas coisas têm o seu tempo e têm de acontecer quando têm de acontecer. Aconteceu uma pandemia que dificultou o trabalho de pós-produção. O filme foi desafiante, o processo de rodagem foi bastante linear, o de montagem e pós-produção foi um bocadinho menos linear porque depois do turbilhão emotivo que foram as filmagens e da construção da segunda era preciso decorá-lo e descobri-lo e encontrar o filme que queríamos, a história que queríamos verdadeiramente contar", explicou, acrescentando que preferiu adiar o filme porque "não poderia de boa fé, como artista ou com professor, contrariar" os conselhos dados pelos agentes políticos para que a população permanecesse em casa.
A PERDA DE UM GRANDE AMIGO
‘Nunca Nada Aconteceu’ conta com um elenco de luxo com nomes como Alba Baptista, Ana Moreira, Bernardo Lobo Faria (na sua estreia em cinema), Beatriz Batarda, Rui Morrison, Joaquim Leitão e Miguel Amorim a serem as estrelas que iluminam o universo encabeçado por Filipe Duarte, a quem o filme é dedicado: "Foi um percurso, um companheirismo muito grande, foi um percurso de início ao fim, só tenho pena que não possa continuar", referiu Gonçalo Galvão Teles.
A presença do malogrado amigo no elenco pode ser para muitos um grande fator de interesse na ida ao cinema, mas o realizador sublinha que o próprio ator não quereria de forma alguma que a sua ausência alterasse a forma como o filme seria encarado: "Para mim nada mudou e espero que para o espetador também não. Nunca quis que o filme fosse apresentado dessa forma, porque não quero que condicione a forma como se vê o filme. Se há alguma coisa que eu aprendi, ao longo dos vinte e tal anos e de cinco filmes que fizemos juntos, era que ele seria o primeiro a dar-me um estalo se eu mudasse alguma coisa por causa do que aconteceu", afirmou.
"Aquilo que eu tinha de fazer era seguir em frente com a vida. E, como disse no discurso da antestreia, a morte deu lugar à vida através das imagens. Não mudei nada no filme, nem quero que mude nada na forma como as pessoas veem o filme, que o vejam como aquilo que é e com um trabalho absolutamente extraordinário do Pipo", frisou, tendo acrescentado: "O melhor elogio que recebi em relação a este filme foi da Nuria [Mencia, mulher de Filipe Duarte], que me disse que quando viu a dedicatória estranhou, porque durante aquelas 2 horas tinha-se esquecido".
UMA MENSAGEM QUE TRANSCENDE DÉCADAS E GERAÇÕES
‘Nunca Nada Aconteceu’ gira em volta das problemáticas encaradas pelas personagens, fruto do seu contexto na vida, e da esmagadora pressão exercida pelo mundo sobre os humanos, comparativamente frágeis, que nele vivem. Questionado sobre se este filme é um produto do seu tempo, ainda que seja passado em 2013, Gonçalo Galvão Teles respondeu positivamente.
"Estas coisas são cíclicas, a génesis inicial que é do Luís Filipe Rocha, versava muito sobre a crise financeira e os anos difíceis de 2012 e 2013, em que muitas famílias ficaram destroçadas e que deixaram marcas muito fortes. Quando iniciei o processo de fazer o filme pensei em retratar essa época e, apesar de não ter adivinhado a pandemia, claro, fui-me apercebendo que não era necessário porque estávamos a passar novamente coisas semelhantes. Problemas financeiros, guerra, inflação, estamos a passar fenómenos semelhantes na forma como sentimos o mundo que nos rodeia".
Acima de tudo, o filme tem a particularidade de tentar fazer transparecer a realidade de gerações distintas, fundindo detalhes que são comummente associados com géneros diversos de filmes, destacadamente, por um lado, aqueles que têm um tema sobre a juventude e a adolescência e outros que se focam sobretudo em personagens de uma faixa etária mais avançada, obrigadas a bater-se de frente contra os obstáculos colocados pela maior maturidade da sua envolvência. Em relação a isto, Gonçalo Galvão Teles explicou-nos qual o objetivo que se prende por detrás desta opção.
"É um retrato transgeracional, em que todos os personagens sentem de alguma forma que o tapete lhe foi retirado debaixo dos pés. Ao fazer esse relato transgeracional e abordar os dramas e os conflitos de cada uma dessas gerações obviamente que acaba por encaixar no 'coming-of-age', nos dramas de adolescência da idade adulta, nos dramas de quem já passou essa fase e agora assiste aos que lhes sucedem e de quem já se preocupa com o caminhar para o fim da vida e tenta ainda encontrar alguma justificação para se manter vivo todos os dias, para viver todos os dias que não seja apenas a resiliência e a teimosia", assinala.
AS MARCAS DA PANDEMIA
Inquirido sobre se considera que o fim dos conturbados anos da pandemia se afigurou como um balão de oxigénio para a ficção portuguesa, o cineasta afirma pensar que sim, exaltando o estoicismo de todos os que nela participam, mas alerta que, para que o regresso ao normal se possa materializar por completo, é imperativo que o esforço seja partilhado entre artistas e público: "Temos demonstrado uma capacidade de resiliência absolutamente fora do normal. Foram anos devastadores em que muitas pessoas experimentaram muitas dificuldades. O facto de estarmos quase todos cá e mantermos esta vontade de continuar, fazer, criar, lutar… É uma resiliência muito grande e cada vez estamos a fazer mais e melhor", declarou.
"Sinto a falta da ligação ao público, sinto uma certa apatia ou indiferença em relação àquilo que é feito. Encorajo as pessoas que viram filmes que tiveram sucesso, antes da pandemia, como ‘Variações’, ‘A Herdade’, ou que viram ‘Glória’ durante a pandemia’, que venham ver o que estamos a fazer. São coisas boas, significativas e importantes, e desejo que a nossa capacidade de resiliência e a nossa força de vontade se reflita de alguma forma na vontade de ver e partilhar as coisas que estão a ser feitas", concluiu Gonçalo Galvão Teles.