
Acordei o meu marido com o teste de gravidez na mão e ainda me lembro do ar radioso e babado dele. A Maria queria uma rapariga e o Tomás queria um rapaz. A primeira ecografia foi inesquecível – "Têm uma linda menina", disse-nos a médica – e desde logo passou a ser a Madalena. Durante esses 9 meses, a Madalena já fazia parte da família.
Quando cheguei à maternidade, faltava algo para me distrair, algo que distraísse o tempo, o tempo que faltava para que eu vivesse pela terceira vez essa experiência inesquecível que é a maternidade. Foi então que a minha mãe me trouxe umas revistas. Lembro-me de ficar perdida na mesma página durante mais tempo do que o habitual. Era uma fotografia de uma mãe com uma filha "mongolóide" às cavalitas. Fiquei tão intensamente comovida que cheguei a ter ciúmes do amor e orgulho daquela mãe.
Quando me chamaram para a sala de partos, ali ficou a revista aberta na mesma página que me deteve tanto tempo e que voltei a encontrar quando regressei do parto, já com a minha Madalena no berçário. Nunca mais me traziam a minha filha, o olhar das pessoas era profundamente triste e, apesar do esboço de sorriso, o meu marido não parecia aquela pessoa que ansiava tanto por ser pai.
Quando me trouxeram a minha bebé, peguei-a ao colo e inspecionei-a minuciosamente como se estivesse à procura "daquele defeito". Foi quando a fixei nos olhos que percebi que havia algo de diferente. Pensei então se seria "mongolóide", talvez influenciada pela revista que acabara de ver. Rapidamente dissipei esse pensamento e comecei a ver parecenças com o meu marido. Afinal, aqueles olhos rasgados eram parecidos com os olhos do Fernando. Mas o dia não corria normalmente. Quando consegui ficar sozinha com o meu marido e, depois de torturá-lo com perguntas, acabei por fazer aquela que tinha tanto medo: "A Madalena é "mongolóide"?
A ignorância aterrou-nos numa tristeza profunda e num choro que chorámos os dois, como se mais ninguém existisse no mundo. Nessa noite tive a certeza de que tinha de ser o pilar ou correria o risco de ver tudo ruir. Decidi aceitar, não sabendo, de todo, o que estava a aceitar, apenas que era a minha filha. Nada disso fazia parte da minha experiência de maternidade.
Quando a levámos para casa, ainda num ambiente de tristeza, rapidamente nos apercebemos de que a força, a esperança e o positivismo tinha que vir de nós. Todos que iam lá a casa ficavam consternados connosco, mas batiam a porta e a vida deles continuava. A nossa também tinha de continuar, de crescer e, acima de tudo, tinha obrigação de ser feliz.
Depois de passarmos pelos sentimentos mais diversos, como revolta, culpa, autocomiseração e pena, começámos a crescer espiritualmente. Acho que passar por essas fases foi fundamental para que nos pudéssemos estruturar novamente, reorganizar os nossos valores. É incrível como tudo é tão relativo!
E nada melhor do que o tempo e as rasteiras da vida para nos mostrar essa relatividade. E os dias foram-se passando e a Madalena dormia e comia e voltava a dormir...
Quando, finalmente, ela começou a interagir comigo e o amor por ela já era tão grande, começou a ensinar-me a esperar pelo tempo dela. As outras crianças pareciam que nasciam ensinadas. Nós tínhamos de esperar que ela aprendesse, mas ela aprendia e foi aprendendo sempre. No tempo dela. Esse esforço e vontade imensa em aprender, aumentava cada vez mais o nosso amor por ela. Cada aquisição que a Madalena fazia era para nós uma felicidade imensa. O orgulho com que ela nos mostra uma habilidade nova, que qualquer outra criança fez num abrir e fechar de olhos, deixa-nos embevecidos.
Aprendi a perceber e a aceitar a diferença sem qualquer preconceito. Diferença essa que, hoje em dia, não me apercebo, porque a Madalena chora quando está triste, ri – e ri muito – quando está contente, brinca quando brincam com ela e faz asneiras, como todos os outros. Só me lembro que a minha filha é diferente quando a falta de informação, a ignorância e maldade das outras pessoas me fazem lembrar, ou quando, pura e simplesmente, olho para ela a brincar e a fazer coisas tão iguais às outras crianças, que me encho de orgulho e de uma vaidade tão imensa.
Apercebi-me de que a vida é mesmo assim e que, quanto maior é a nossa força e vontade de viver, melhor é o nosso dia a dia e o de quem vive connosco. E que, sejam os problemas maiores ou menores, todos eles são ultrapassados com amor e respeito pelo próximo, seja ele diferente ou não.