Certo dia uma criança resolveu ser feliz,
hoje vou ser feliz,
só assim, sem mais nem menos,
hoje vou ser feliz,
e foi mesmo,
perlimpimpim,
hoje vou feliz,
e já está,
foi mesmo,
o problema é que depois essa criança cresceu,
que é como quem diz que diminuiu,
crescer é quase sempre diminuir o que interessa,
a capacidade de sonhar, acima de tudo, a capacidade de acreditar no impossível, de fazer de conta,
a vida quando não tem uma parte de fez de conta não existe e não é vida nenhuma,
temos de acreditar no que não existe para a vida existir mesmo,
mas contava eu que essa criança cresceu e por mais que decidisse ser feliz,
e decidiu muitas vezes,
hoje vou ser feliz,
disse uma vez,
hoje vou ser feliz,
disse outra vez, e outra,
hoje vou ser feliz,
mas não, não conseguiu, tentava e não conseguia,
ora havia uma conta para pagar, ou um objetivo por alcançar, ou uma casa para desejar, ou um carro para almejar, ou uma promoção para perseguir,
hoje vou ser feliz,
e nada,
nada,
nicles, niente,
a menina que cresceu e deixou de ser menina decidia muitas vezes e ser feliz e raramente conseguia mesmo ser feliz,
não se pode ter tudo,
dizia-lhe a mãe, o pai, a amiga, os primos, a irmã,
não se pode ter tudo,
e aos poucos a menina acreditou que sim,
que não, na verdade,
que não se pode ter tudo,
que a felicidade não se decide,
hoje vou ser feliz,
não, não basta desejar e ela aparece,
até que certo dia a menina decidiu hoje vou ser feliz e nesse instante passava ao lado um homem que decidira nesse mesmo dia, há poucos segundos, exactamente o mesmo,
hoje vou ser feliz,
olharam-se felizes e ficaram felizes,
a felicidade é como um vírus, passa entre quem se ama,
hoje vou ser feliz,
disse ela,
hoje vou ser feliz,
disse ele,
e o pior é que foram mesmo,
enfim,
que vergonha,
acham mesmo que têm tudo,
e têm mesmo,
que criancice,
enfim,
haja paciência.
Salvação: s.f. Capacidade de encontrar no que nos acontece aquilo que queremos que nos aconteça: aquilo que sempre quisemos que nos acontecesse.
