
Tenho a sensação de que o mundo é um pássaro de barro, sabes? Uma ironia cruel: para quê ter asas se não as podemos mexer?
Estou deitado no quarto fechado. À minha volta as lembranças.
À nossa volta estão sempre as lembranças, uma espécie de barro que nos impede o movimento.
Magoa-me o que já fomos, muito mais do que aquilo que ainda somos.
A insuficiência não é o motivo para a infelicidade, somente a felicidade recordada.
Somos o que conhecemos.
Nunca ninguém que nunca foi verdadeiramente feliz é verdadeiramente infeliz.
A ausência é constantemente o que dói: o que de repente, ou não tão de repente assim, deixamos de ter. Melhor ainda: o que de repente, ou não tão de repente assim, deixamos de sentir.
Qual é mais infeliz: o que nunca amou ou o que deixou de amar?
Eu estou algures entre os dois. Magoa sentir algum espaço vazio no que outrora ocupava tudo.
O que fere não é o espaço vazio: é o espaço desocupado, o espaço que outrora nos fazia plenos e agora nos faz incompletos.
Fomos o irrespirável, o arfar, o gemido, a ansiedade, a ânsia, até a angústia, e a saudade, e o medo, a aventura, o arrojo, o risco, o suor, a roupa espalhada, os lençóis amarrotados. É nisso que penso quando nos olho agora.
A infelicidade é pensar no que já não é, no que jamais voltará a ser.
O que somos é bom, muito bom. Somos a respiração calma, a paz, as palavras doces, o abraço protector, o beijo envolvente, o cuidado, a ternura, a segurança, o refúgio, a amizade maior, a intimidade serena, a cumplicidade, o afago, a gentileza, a preocupação. Tudo tão bom. E no entanto.
A puta da recordação.
A puta da recordação deixa-me triste, a comparação deixa-me triste. Talvez porque já não volta o que já fui, talvez porque é a prova de que o tempo passou — e com ele nós, o que fomos nós, passou.
O tempo só passa quando não tem volta.
Não temos. Não temos volta. Tudo o que lembro de nós é melhor do que tudo o que sinto de nós.
A morte é apenas o momento em que tudo o que te deixa feliz já aconteceu.
E nós, lamento, somos cada vez mais o que fomos.
*
Estamos tão crescidos, meu amor,
lembras-te do quão inconsequentes éramos quando nos metemos por aquela estrada de madrugada e fomos sem destino só à procura de nós?,
o amor é irmos à procura de nós, eu sei,
mas é isso o que também agora fazemos, não é?,
temos um espaço partilhado,
temos um templo de amor, não achas?,
sabemo-nos tão bem,
o amor é sabermo-nos bem, eu sei,
quando um está triste o outro sabe e aproxima-se, sem querer salvar mas apenas para querer estar, cuidar, ouvir,
amar,
o amor é estar, cuidar, ouvir, eu sei,
sou a tua mulher e tu és o meu homem, que silêncio haverá maior do que este?,
a felicidade tem tantas faces, há tantas maneiras de sermos felizes, graças a deus,
e a nós, sobretudo,
que soubemos andar juntos, ficar mais fortes juntos, entender que é muito mais o que se ganha do que aquilo que se perde quando se ganha idade,
envelhecer só acontece aos velhos,
aos que se deixam derrotar com a idade, como se mais um ano fosse menos uma possibilidade,
cada dia é mais um dia de nós, já viste que sorte?,
estás no quarto, dormes e eu penso em ti,
amo-te, eu sei,
quando penso em ti amo-te ainda mais,
por vezes apetece-me abraçar-te só por me teres dado a oportunidade de viver contigo tudo o que passámos a ser,
somos tão grandes quando amamos, não somos?,
a idade leva-nos tudo menos o amor,
obrigado,
amo-te,
nunca te esqueças.