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Margarida Rebelo Pinto
Margarida Rebelo Pinto Pessoas Como Nós

Notícia

A lua no capacete

O mundo anda muito focado na conquista fácil e desfocado do essencial, e eu encolho os ombros a tanta futilidade.
17 de agosto de 2019 às 08:23
lua cheia, luar, casal, namoro, beijo, amor
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Lua cheia outra vez e eu a olhar para aquela bola amarela que me faz pensar no meu gelado preferido, caramelo com flor de sal. Esse mesmo, uma das novidades mais saborosas da gelataria que abriu na loja do prédio onde vivo há quase dez anos. Como se pode viver com uma gelataria à porta de casa e não ficar com a cintura da largura de um arco de hula hoop? É simples: racionar os apetites e duplicar as idas ao ginásio. A gelataria é do lado esquerdo da porta da rua, o ginásio é para o lado direito. Assim sendo, quando saio para a rua, sei que vou escolher entre o pecado delicioso ou o rabo tonificado. Entre cinco minutos de prazer ou uma hora de exercício. Entre ceder à tentação ou ser um arauto do estoicismo autoimposto.

Ora todo o comum mortal sabe que estes dilemas só existem dentro da nossa cabeça, porque gostamos de acreditar que quem nos ama de verdade, não se importa quantos gelados comemos. Mas não é exatamente assim. A atração física é mesmo importante para manter a chama acesa, digam o que disserem. Claro que não chega para construir uma relação, mas sem esse trigger, mais vale ficarmos amigos para a vida, como companheiros de camarata, aliados em batalhas e irmãos na paz. Isto tudo para te dizer que quando te conheci, reparei mais nos teus olhos do que na tua altura e mais no teu sorriso do que no resto. 

És trocista, tens cara de miúdo, fazes-me lembrar o meu primo Filipe que a morte apanhou numa reta a caminho do Algarve quanto tinha 19 anos. O Filipe também tinha olhos azuis e estava sempre a troçar de mim, por eu ser magra a desengonçada, por ter pescoço de girafa, por ser um bocadinho estrábica do olho direito e nunca perceber o que era um fora de jogo. O Filipe adorava futebol, corridas de fórmula 1, miúdas com curvas e motas. A Laura, que ia com ele nessa terça-feira fatídica, foi projetada a alguns metros. Quis o destino que sobrevivesse ao acidente, o Filipe partiu a espinha na queda e teve morte imediata. Óleo na estrada, era o que constava no relatório da GNR. Óleo na estrada e os meus tios perderam o filho mais velho, os meus avós o neto preferido, e eu o primo mais maluco, mais querido e mais divertido do mundo. 

O Filipe metia-se com as minha amigas todas, mas estava sempre alerta com os malandros que tentavam catrapiscar-me, apesar da cintura infantil, do pescoço de mamífero artiodátilo ruminante e da falta de curvas. Nunca tive falta de pretendentes, nem quando tinha 16 anos e comecei a sair à noite com o Filipe, nem agora que já passei dos 40. O mundo anda muito focado na conquista fácil e desfocado do essencial, e eu encolho os ombros a tanta futilidade. Vejo algumas amigas entusiasmadas com um tipo diferente todas as semanas e penso, isto não é para mim, prefiro dar tampas em português durante o inverno e em várias línguas durante o Verão. Acho que a vida fez de mim uma pessoa blasé, por isso quando me disseste que também tinhas pouca paciência para os outros em geral, vi uma luz fundo do túnel. Como te percebo. Eu também entrei nessa fase que julguei ser temporária, mas os anos passaram e percebi que já não estava a atravessar o deserto, já vivia nele como uma tuaregue do coração, com tendas, cantis e turbantes que embrulham o desejo, numa existência que se torna pacata graças à ausência de expectativas.

Um dia destes, se te apetecer rir do mundo, podemos ir os dois ao ginásio, ou comer o gelado da minha vida, aquele que tem a cor da lua quando está a rebentar no céu. Ou podemos fazer as duas coisas. Damos um passeio à beira do rio e tu contas-me o que viste nos meus olhos quando entraste naquela pizzaria e me conheceste por acaso. Nem tu eras para ir naquela noite nem eu tinha vontade de sair casa, mas a vida é mesmo assim, se queres deixar a vida do deserto, tens de corrigir a rota e tentar subir novas montanhas. Nunca se sabe se do outro lado existe outra vida à tua espera, e eu estou farta de comer gelados sozinha e de ver a lua encher no céu sem a poder abraçar. 

Quando vieres, traz a lua dentro do teu capacete, tenho a certeza que cabe lá dentro, porque a lua é sempre do tamanho do nosso coração.

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