
Quando era pequena o meu pai parecia o homem da Regisconta. Alto, elegante, sóbrio, chegava a casa de pasta na mão, desatava o nós da gravata, abraçava a minha mãe e os três filhos. Não sei se o homem da Regisconta que aparecia nos anúncios com a assinatura Aquela Máquina usava óculos de massa. Parece-me que não, mas o meu pai sempre usou, portanto na minha memória coloquei no nariz do homem da Regisconta uns aros de tartaruga elegantes e circunspectos. Há muitos homens, mas com o homem da Regsiconta, você pode contar, porque é aquela máquina. E eu contei com ele para tudo, talvez por sermos os mais parecidos na família.
Sempre que vou visitar o meu pai, ele tira os óculos. Os seus movimentos são lentos e tremidos, a doença foi tomando conta dos músculos e dos nervos, mas o olhar intenso, vivo, verde e observador, é igual. E o sorriso meigo também. O meu pai tira os óculos porque sabe que sem a armadura graduada é mais fácil abraçá-lo e dar-lhe beijos na testa e na cara. Às vezes penso que tira os óculos porque lhe pesam. Nas doenças crónicas talvez o pior seja isso mesmo, o peso da impotência, a certeza conformada de que não haverá melhoras, isto sou eu a imaginar porque quem nunca teve uma doença crónica não consegue meter-se na pele de quem a tem. Por mais exercícios de empatia que se façam, é impossível. Tal como é impossível explicar o que é viver em solidão a alguém que nunca morou sozinho mais do que alguns meses, ou o que é ser mãe e viver com o coração fora do peito a quem nunca pariu nenhum filho.
Eu abraço o meu pai sempre que o vou ver, uso os braços para o envolver e ele usa o seu coração de pai cheio de carinho e de amor, à falta de força para levantar os braços. Não faz mal, sinto-me mais abraçada do que nunca. Tenho muita sorte. Quem aprendeu a dar abraços em criança fica com mais ferramentas para a vida. Os abraços da nossa infância são a nossa bateria de amor para toda a vida. É claro que, como todas as baterias, precisa de ser carregada de vez em quando, às vezes com cabos, em situações extremas, como acontece com os carros antigos. Os cabos são os amigos e a família, e às vezes aquele ex-namorado que se reencontra na esquina do acaso e que nos levanta do chão com a alegria dos encontros inesperados. Isto sou eu outra vez a imaginar, porque às vezes sonho com esse momento mágico e há pouco tempo aprendi que o cérebro não distingue entre um momento já vivido e um momento imaginado. À falta desse abraço sonhado, vou abraçando os meus filhos e as minhas amigas sempre que posso, o que nos dias que correm, já não é nada mau.
Há dias jantei com um grupo desses amigos que nos enchem os dias de pequenas atenções de dei três abraços seguidos à Ana. Dizem que quem tem uma Ana tem tudo, eu tenho três. Esta Ana, que é a mais empática e intensa de todas, tem de se pôr em bicos dos pés para me abraçar porque é baixinha e linda como uma fada das flores, e naquela noite demos três abraços. Estávamos a duas a precisar.
No regresso a casa, enlevada por aqueles instantes de sentimentalismo que invadem o espírito e ocupam o coração mesmo antes do sono chegar, agradeci os abraços. Do dia seguinte li a resposta: eu é que agradeço, vou abraçar-te até morrer. Tal e qual assim. Vou abraçar-te até morrer. A frase ficou-me na cabeça e passou para o coração, depois passou para o meu sistema sanguíneo, onde corre agora entre glóbulos brancos e vermelhos, diluída no meu ser.
Eu quero abraçar o meu pai até morrer, quero abraçar os meus filhos e sobrinhos, a minha mãe e os meus irmãos, a Anas e as outra fadas do meu mundo. Quero acreditar que o mundo ainda é um lugar onde é mais fácil dar um abraço do que oferecer o corpo por carência ou saudade a quem não merece os nossos abraços. E quero acreditar que, quando chegar a hora de partir para outro lugar, consegui dar todos os abraços que tinha na minha bateria de amor.
Afinal, para que nos servem os braços, além do trabalho que a vida nos impõe e dos fardos que cada um é obrigado a carregar em vidas de solidão escolhida ou acompanhada? Quero abraçar quem eu quiser até ao último dia da minha vida, como o meu pai me faz com o sorriso e o olhar sempre que o visito. É como se tivesse outra vez cinco anos, o cabelo preso em dois totós, as respostas na ponta da língua e coubesse inteirinha no seu colo de pai.