
E lá fomos nós comer um gelado, como tínhamos combinado dias antes, saboreado no reino da antecipação de sonhar, momento e momento e gesto a gesto, o reencontro. Acho que nenhum de nós estava nervoso, embora não negue que, do meu lado, a alegria reinou ao longo de todo o dia, desde que recebi a tua mensagem pela fresca da manhã, a confirmar o desejo de me ver.
Escolho sempre o mesmo sabor, caramelo com flor de sal, como um ritual, e o segundo, para desenjoar, é quase sempre diferente. Se calhar é porque faço mais ou menos tudo assim na minha vida: uma parte é regida pela segurança, pela força da rotina, pelas escolhas mais acertadas, pelas decisões de valor seguro. Mas existe sempre a outra parte que me faz arriscar, confiar na sorte, nunca ter medo de nada, atirar-me para a piscina sem experimentar a temperatura da água e abrir as asas sempre que me apetece, tantas vezes sem alinhar os fios do para-quedas. Isso é o meu outro lado, para lá da sensatez e da razão, aquele que mais me estimula e o que mais assusta a minha mãe, toda ela razão e fundamentos lógicos, cartesiana de corpo e alma, para quem as fantasias líricas alheias são um sinal de falta de foco, quando não de fraqueza.
Uma das coisas que mais gosto em ti é seres mais terrível do que eu. No início não se dá por nada. Tens aquele ar arrumado e composto dos meninos que andaram sempre nos melhores colégios e passaram férias da Páscoa em quintas de família. Os modos são irrepreensíveis e a educação também, Atenção, porque uma coisa não se deve confundir com a outra; o mundo está cheio de palermas polidos a quem as mulheres ensinaram a abrir as portas e a caminhar do lado de fora do passeio a quem falta as bases de uma educação sólida. Ser bem-educado é outra coisa, nem vamos por aí porque ninguém tem tempo a perder.
Que bom que estava aquele gelado. O teu e o meu. Quem nunca misturou limão com chocolate não percebe nada de prazer. Sentámo-nos no canto mais sossegado e conversámos sobre mil coisas, enquanto eu saqueava sem cerimónia a teu cone. Eu misturo os assuntos sem querer, é como a minha cabeça funciona, assim que puxo um, saltam logo mais quatro ou cinco. Tenho sempre histórias para contar, episódios engraçados, apartes, comentários trocistas, o meu raciocínio nunca foi lógico nem linear, não é bom nem mau, é assim. Mas o que eu gosto em ti é que toda esta complexidade parece divertir-te. Ouves-me sempre com atenção e interesse, como se quisesses entender tudo o que digo e tudo o que fica por dizer, e eu penso que grande parte do entendimento do outro vem da nossa vontade. O amor é sobretudo vontade, não é? Vontade de tudo, dirias tu, que és o meu mata-e-esfola já em tantas coisas em tão pouco tempo. Às vezes a vida é generosa e traz-nos pessoas que, não sendo parecidas connosco, olham para o mundo de uma forma tão idêntica que parece que o Universo está a gozar com a nossa cara, mas não está. Apenas tivemos sorte. Ou, como dizem aqueles que se refugiam na fé de Cristo, Deus é grande. Se assim for, então Deus às vezes é muito grande.
O Verão chegou tarde e eu estava há muito tempo à espera de conhecer uma pessoa como tu. Não leves demasiado a sério o que te digo, talvez as circunstâncias estejam apenas a jogar mais a teu favor do que poderias acreditar. Nunca saberemos como podia ter sido se nos tivéssemos conhecida há cinco anos. O mais certo era nunca ter dado certo. E mesmo agora, quem sabe o que vai acontecer?
Ficámos mais de uma hora a conversar, sempre que estamos juntos é como se os telemóveis se desligassem por sua conta e risco, não queremos saber de mais nada para lá das nossas conversas e do nosso riso, sempre na ponta da língua, sempre no fio da navalha. Horas mais tarde, vejo-te a voar baixinho com o teu capacete onde cabe a lua e volto para casa sem pensar como vai ser o dia amanhã para não estragar o momento.
Gosto de pensar que a vida é sábia e que Deus é grande, que o Universo conspira a meu favor e que as estrelas e planetas que brilham no firmamento não estão colados ao teto do mundo naquelas posições por mero acaso. Se quiseres candidatar-te ao posto de Mata-e-Esfola no meu coração, talvez eu abra uma vaga. Só há uma e o processo não vai a concurso. Sou eu que escolho. Afinal, são sempre as mulheres que escolhem os homens, não há volta a dar. E ainda bem.