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Margarida Rebelo Pinto
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Margarida Rebelo Pinto: Bules e sonhos partidos

Chamo-lhe Mr. Cat porque é silencioso, introvertido e saboreia a solidão como um chá quente. A conversa está ótima, voltei a Milão para me despedir da equipa italiana.
03 de fevereiro de 2017 às 01:13
milão, viagens
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Ele chegou atrasado para o chá no número 10, Corso Como, pensei que já não vinha. O céu estava cinzento, está quase sempre em Milão, tão diferente das cidades do Sul de Itália. Milão não tem a graça de Roma, a magia de Veneza ou a beleza de Florença, não tem torres tortas nem a confusão de Nápoles, é a cidade da moda, do design, da vanguarda e do dinheiro. E talvez por ser a menos italiana das cidades da bota geográfica, é aquela onde os europeus do Norte se sentem mais em casa.

É um homem do mundo. Nasceu na Polónia, no tempo da União Soviética, cresceu em Moscovo numa casa partilhada, estudou no Michigan graças a uma bolsa, viveu em Nova Iorque, Londres, Munique e Amesterdão. O sangue eslavo corre-lhe nas veias através da mistura de todos os costados, com um fugaz cruzamento de cigano em algum momento que lhe deu o cabelo farto e o nariz largo que contrastam com a testa alta e ligeiramente recuada.

É um gentleman europeu que veste camisa branca todos os dias, blazer de fazenda ao fim de semana e sapatos de camurça de atacadores. Nunca lhe perguntei a idade porque sei que o coração lhe pesa mais do que todo o que já viveu e tem a cabeça cheia de quem pensa muito e não sabe desligar. Milão é agora a sua segunda casa, vive na cidade há 3 anos e tem um apartamento maravilhoso, recheado de livros de arte, revistas de arquitetura e candeeiros vintage.

Chamo-lhe Mr. Cat porque é silencioso, introvertido e saboreia a solidão como um chá quente. Quis o destino que nos cruzássemos numa reunião de trabalho, eu represento uma marca internacional de cosméticos, ele foi o realizador escolhido pela agência de publicidade para realizar o filme do novo creme anti-rugas, anti-idade, anti tudo aquilo que as mulheres acreditam que podem suavizar para parecerem mais novas. Foi há um ano e desde então a nossa amizade tem sido alimentada por mensagens, fotografias e longas conversas de Skype.

Milão está cheio de mulheres bonitas, parece um catálogo vivo de uma agência de modelos, na rua, nos cafés, a andar de bicicleta, nas lojas, nas estações de metro e nas paragens de autocarro. Um desfile permanente e estonteante que deixa os seres humanos mais sensíveis à beleza física com uma sensação de exaltação.

Mas depois uma pessoa habitua-se, deixas de as ver, tudo se torna normal, quase transparente, até falarem contigo e perceberes que têm de facto alguma coisa pra te dizer. A beleza de uma mulher está na sua inteligência, generosidade e integridade, na capacidade tão feminina de se dar e de se entregar. É esse tipo de mulher que gostava de encontrar, mesmo que não tenha as medidas standar das manequins da moda.

A conversa está ótima, voltei a Milão para me despedir da equipa italiana, a concorrência fez-me uma oferta irrecusável, ele convidou-me para ficar para o fim de semana. Sabe que gosto de antiguidades e quer levar-me ao Mercatone del Naviglio Grande, junto ao canais. Ele sabe que faço coleção de bules de chá, é uma mania que me vem da minha avó Lucília que enviuvou muito cedo e nunca mais voltou a casar.

- Um coração partido é como um bule de chá rachado, nada permanece lá dentro – dizia-me sempre que me servia chá inglês na mesa da sainha de estar com a braseira da caminha ligada – Não deixes que te partam o coração querida, senão podes demorar muito tempo a recuperar.

Conto a conversa da minha avó ao Sergei, que tem o olhar triste de um coração amolgado há muito tempo. A mulher desistiu do casamento e foi viver para outro país. Não sei se foi há dois ou cinco anos, ele nunca fala em datas porque sabe que o tempo não conta para nada quando o amor nos dá cabo da cabeça, e depois do coração e depois da vida.

- Eu gostava que não fosses um bule partido – diz-me com um sorriso terno.

- E eu gostava que tu também não fosses, mas parece-me que de dois bules danificados não se faz um bule inteiro.

Agarra-me a mão e um calor suave invade-me a carne até ao ombro, depois espalha-se pelo peito e sobe-me à cara. Gostava mesmo de tentar ser feliz com este homem, mas nem vou tentar. Não posso partir mais nenhum bule da minha coleção. O meu coração não ia aguentar. 

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