
Foram dez anos daquilo. Imagina-te a apanhar um avião para a mesma cidade durante dez anos. E quando chegas, a apanhar um táxi para um hotel, quase sempre o mesmo. E a pedir a chave do mesmo quarto, o 1607. Ele gostava daquele número, tinha o dia e o mês em que nos conhecemos. E eu habituei-me àquela vida: apanhar um táxi até à Portela, fazer o check-in, sempre à espera de encontrar uma cara conhecida que me perguntasse sem malícia:
- Vais para onde?
- Para Madrid, em trabalho.
- E voltas quando?
- Amanhã, tenho os miúdos.
Não te sei dizer quantas vezes este diálogo se repetiu, a vida é feita de erros e de repetições dos mesmos erros, isso já se sabe, mas só depois de muitos anos a bater com a cabeça nas paredes é que percebes a merda que andaste a fazer.
E mesmo que, apesar de todos os erros e loucuras nunca tenhas sido apanhada na curva, vai-se instalando no sangue uma sensação de desesperança e de abandono que acaba por te tomar os dias. Primeiro sentes-te uma heroína da Marvel, depois sentes-te uma cabra, e depois já não sentes nada.
O Fernando nunca soube. Pode ter suspeitado, mas nunca me confrontou com nada. Eu trabalhava muito naquela época, os clientes mais importantes do escritório eram de Madrid, eu ia num pé e voltava noutro. Decisões importantes, conversas fundamentais, contratos e acordos, angariação de novos clientes, enfim, um sem número de razões que não eram mais do que desculpas – e quantas vezes uma razão não é o mesmo que uma desculpa? – para me encontrar com o Pepe que me esperava, com os seus fatos caros, os seus sapatos feitos à medida em Londres e as suas gravatas Hermès, a cheirar a Lowe como um bom madrileno, às vezes com rosas, outras vezes com lingerie, mas sempre com uma vontade louca de me ter.
E eu deixava-me ir naquilo, a vertigem do proibido, o prazer em ser tratada como um objeto de desejo, a fantasia da transgressão, o medo de que tudo acabasse, sem saber que estas histórias às vezes nunca acabam.
Dez anos disto. Os miúdos perderam os dentes de leite, tiveram sarampo e varicela, acabaram o quarto ano e mudaram de escola, à Luisinha cresceu-lhe o peito e ao Manel pelos na pernas e o Fernando sempre calmo, imperturbável, com os óculos sujos e o trabalho do banco sempre em atraso, sem nunca me perguntar porque ia tanto a Madrid, sem nunca me perguntar nada, mesmo quando deixei de fazer amor com ele porque estava de cabeça perdida com o meu amante espanhol que me tomara conta das carnes e do juízo.
Tornei-me lasciva e atrevida, comprei peças de roupa interior que não sabia que existiam, tornei-me na amante profissional que nunca pensara vir a ser.
Até que um dia, tudo acabou. Cheguei ao hotel e o Pepe ainda não estava. Esperei meia hora e nada. Liguei para o telemóvel, não atendeu. Bebi um copo e voltei a ligar. Continuava sem atender. Fiquei sem saber o que fazer. Há dez anos que não sabia o que era estar em Madrid sem ele.
Saí do hotel e fui comer umas tapas ali ao lado na Serrano, onde costumava ir com ele. Sentia-me sem chão. Ouvia os ruídos ao longe, as vozes pareciam vir do fundo do mar. Bebi um copo de tinto e fiquei ainda mais tonta. Tentei ligar de novo, o telemóvel estava desligado. Voltei para o hotel e tomei um comprimido para dormir.
Fui acordada às oito da manhã por uma voz fria e antipática de uma mulher de 60 anos.
- O senhor Pepe morreu ontem de ataque cardíaco. Achei por bem informá-la.
- Quem fala?
- A secretária. Há dez anos que lhe marco os hotéis para se encontrar 'con usted. Pero ahora basta. Esta pago, puede salir cuando usted quiera'.
E desligou sem mais uma palavra.
Eu não tinha nome. Era só a amante do patrão. Pepe era meu cliente no escritório. Regressei a Lisboa e assinei com os outros advogados um cartão de condolências para a família. E nunca mais consegui ser feliz.
Madrid sempre nos mata, de uma forma ou de outra.