
Chegamos a Florença numa tarde fria de novembro, depois de termos aterrado em Bolonha e apanhado o comboio. Viajo com a minha tia Adelaide, irmã mais nova do meu pai que enviuvou há quatro meses. Cuidou do meu tio Alfredo durante cinco anos.
O calvário do cancro, só quem já viveu de perto com o monstro sabe do que falo. Em três anos perdi outro tio, o meu amigo Manel e o marido de uma amiga. Adoeceram os três praticamente ao mesmo tempo.
O meu tio era como um segundo pai, o Manel era o meu conselheiro sentimental e o Carlinhos meu conselheiro financeiro. Com o meu tio Alfredo a relação nunca foi forte nem profunda, ao contrário do que acontece com a tia Adelaide, que sempre me tratou como uma filha.
Sem nunca conseguir engravidar, depois dos 40, a tia Adê desistiu de ser mãe biológica e estreitou ainda mais os laços que tinha comigo. Nos tempos da faculdade cheguei a morar com ela e desde que me lembro de ser gente que me leva em viagens magníficas.
- Este verão vamos a Florença – dissera-me no início do ano, embora as duas soubéssemos que talvez isso não fosse possível. Nunca se sabe o que acontece com as doenças, às vezes parece que a ciência as domina por completo, outras vezes são terroristas sem medo de nada nem de ninguém que vencem tudo espalhando a morte.
Não fomos no verão, mas fomos no inverno. "Se estiver sol, a cidade é ainda mais bonita", justificou a tia Adê. Eu nunca tinha ido a Florença. Já tinha ouvido falar do poder dos Medicci mas não conhecia o seu amor à arte e a sua paixão pela ciência.
Florença é a essência da cultura renascentista. Tudo na cidade parece perfeito e intocado, desde o pavimento de pedras grandes e irregulares aos palácios que são museus e museu que são palácios, às igrejas, torres e monumentos vários que nos deixam sem respiração.
Na igreja de Santa Maria Maggiore existe um relógio bizarro que merca as horas de sol a sol e cujos ponteiros giram ao contrário.
No domingo, a tia Adê acordou cedo e disse, "vamos, tenho uma missão a cumprir". Ao atravessarmos a Ponte Vechio, com lojas construídas em cima que parecem equilibrar-se na paisagem como uma acrobata circense que cruza o arame com uma vara na mão, fez-me uma revelação inesperada:
- Sabes filha, eu quis vir contigo a Florença porque tenho de te contar uma história. Antes de conhecer o teu tio, apaixonei-me por um rapaz, Piero, filho do embaixador de Itália em Portugal. O pai dele era um fascista de linha dura, queria que ele seguisse a carreira militar, mas ele era de esquerda, adorava o Hemingway e os seus ideais.
Além disso era um pintor por vocação, um artista que nunca se iria encaixar na vida regrada de quem segue um regime. Éramos muito jovens e estávamos muito apaixonados. Nem os teus avós nem o teu pai suspeitavam de nada.
O Piero quis fugir comigo para Florença, mas o teu pai, habituado a vigiar-me, apanhou-me a planear a fuga e não me deixou partir. Eu tinha de ir de comboio até Madrid e apanhar o avião lá. No último instante desisti.
Não tive como avisar o Piero, meses depois conheci o teu tio e casei-me. Estive quase 50 anos sem saber do Piero, até que o encontrei no Facebook. É viúvo, vive em Florença e vamos agora ter com ele à feira de antiguidades na Piazza Santo Spiritu.
Sem conseguir fechar a boca de espanto, perguntei:
- E como é que conseguiu combinar isso tudo?
- Pelo Facebook querida. Não me disseste um dia que com a internet e as redes sociais tudo era possível?
- E a tia ainda gosta dele?
- Claro, essas coisas nunca mudam. É como se o tempo não tivesse passado.
Há corações que são como o relógio de Santa Maria Maggiore.