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Margarida Rebelo Pinto
Margarida Rebelo Pinto Pessoas Como Nós

Notícia

Nem por isso

O silêncio tem muitas cores, todas as manhãs acordo com ele ao lado e nunca sei como vou conseguir enfrentá-lo.
01 de setembro de 2017 às 07:00
Quinta do Lago, Algarve
Quinta do Lago, Algarve

Eu tinha chegado tarde à praia, não porque estivesse cansada do sol e do calor, mas porque no final das férias tenho quase sempre dores de cabeça. Só de pensar em fazer as malas, fechar a casa e voltar para o meu apartamento em Santa Isabel de três lances de escadas sem elevador com as tralhas e os miúdos às costas, instala-se uma preguiça no meu sistema nervoso que só me apetece dormir. 

Nos últimos dias de férias fico mais tempo na cama a matutar na vida enquanto os meus amores tomam o pequeno-almoço, jogam nos telefones e nos iPads, dão mergulhos na piscina  e se distraem com aquela alegria que só tens até aos 12 anos. 

Três filhos foi o que a vida me deu. Três filhos e uma casa de praia na zona mais cara do Algarve a cinco minutos a pé da areal. Tenho uma vida boa, graças a imóveis de família herdados, condição  ingrata de filha única. 

Já morreram todos menos a tia Mimi e o tio Alfredo. A tia Mimi é irmã da minha mãe e o tio Alfredo meio irmão do meu pai. Só o conheci já tarde, quando o meu avó, em estado viúvo e moribundo, disse à filha que afinal havia outro. Outro filho.

A minha mãe nunca se recompôs dessa mentira de décadas. 

Quando a minha mãe adoeceu, ganhei um tio novo. Ele foi incansável com ela e depois da sua morte continua incansável comigo, portanto seria injusto da minha parte dizer que estou só no mundo. Para mais com uma tia tão próxima que antes e depois da morte da minha mãe sempre me tratou como sua filha. 

Mesmo assim, como venho de férias sozinha com os miúdos, o mês de agosto é sempre bom porque desligo e sempre triste porque tenho saudades tuas. 

O Zé sofre do mesmo mal, coitado, porque nunca passa o período de férias sem me mandar mensagens, primeiro a perguntar pelos miúdos e depois a dizer que tem saudades minhas. 

Depois de ti não trouxe ninguém aqui, a não ser amigos castos ou pretendentes iludidos . A minha cama é demasiado grande para caber nela uma aventura ou um disparate. Na verdade nem me passa pela cabeça mudar o registo. Já me habituei a fazer tudo sozinha, dormir sem ti já foi um inferno, agora é só a vida como ela é, doenças e calamidades é que são coisas graves, o resto vai-se levando como Deus manda. 

Cheguei à praia, estava maré baixa, besuntei os miúdos com protector e pus-me à conversa com as minhas amigas. Uma está farta do marido mas não se quer separar porque diz que dá muito trabalho, a outra adora o marido e vivem uma relação em que o conflito alterna com a paz e a outra está divorciada como eu. Descobriu que o marido lhe punha os cornos com uma colega de trabalho e mandou-o embora. 

Elas vão contando histórias deste e daquele, de quem se separou e se juntou, enquanto fico calada. Não tenho coragem de lhes dizer que ainda penso em ti e que ainda tenho saudades tuas todos os dias. Também poupo o Zé e a sua condição de eterno ex-marido apaixonado, que apesar de ter uma namorada, nunca deixou de dar sinal desde que nos separámos. 

Aprendi a ficar calada com a tia Mimi que toda a vida teve um amante e nunca ninguém soube. 

– Se queres calar, cala primeiro  - disse- me tantas vezes , até eu aprender. E aprendi. 

Não te vejo há meses, de vez em quando trocamos mensagens, outras vezes nem me respondes. Continuas com a tua vida,  mas as poucos amigos em comum estão interditados de falar de ti ou de referir o que quer que seja sobre a tua pessoa. A todos pedi um pacto de silêncio para me proteger. 

O silêncio tem muitas cores, todas as manhãs acordo com ele ao lado e nunca sei como vou conseguir enfrentá-lo. A certa altura a Luísa perguntou-me:

– E o Pedro, nunca mais deu à costa? 

Viro-me para o outro lado e respondo:

– Nem por isso.

Mudo a conversa com aquele assunto que todas as mães gostam de falar, colégios e atividades extras, e rapidamente se esquecem de ti. 

Foste sempre um fantasma para as minhas amigas, nunca te viram comigo, a nossa paixão sempre foi a dois, embora os miúdos gostassem de te ver lá em casa. Com o tempo deixaram de perguntar por ti e nunca quis saber se ainda se lembram da tua boa disposição e paixão por frutos secos. Quando já não há nada a fazer, o melhor é  deixar as coisas como estão. 

Hoje és só um fantasma na minha vida. Não sei como te esquecer, por mais que queira. Talvez no próximo verão, quem sabe.

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