
Todas as grandes histórias de amor passam por um banco de jardim, desde a paixão dos meus pais até ao 'Notting Hill'. Há sempre um rapaz tímido, uma rapariga decidida, há sempre confidências e sorrisos, abraços adiados e beijos desejados. Há sempre medo e vontade, quase sempre mal distribuídos. E há
sempre um sonho por realizar.
Com o rapaz da lancheira não foi diferente. Vi-o chegar com o passo elegante e bem marcado. Alto, magro, sisudo, os Ray-Ban espelhados para se esconder como um mágico e para me ver melhor. Fingi que não percebi o truque. Os meus também eram espelhados, mas tirei-os várias vezes para que pudesse olhar os meus e vê-los sem filtros.
Estendi-lhe uma lancheira pequena com bolinhos de chocolate e pastilhas de menta, sem saber que gostava tanto de chocolate como eu. Talvez tenha adivinhado. Hoje em dia adivinho tantas coisas que a minha cabeça já está a ganhar o formato de uma máquina de radiografias. Sou um scanner humano, consigo ler o coração daqueles que entram no meu, mesmo que cada um fique apenas à porta da vida do outro.
Não pedi este dom a Deus, mas como tudo aquilo que é verdadeiramente importante na vida, não fui eu que escolhi ser portadora natural de tanta clarividência. Podia ignorar ou aceitar, aceitei aceitar, o que neste caso nem sequer é uma redundância. Aceitar tem sido o verbo treinador do meu coração do qual tento ser a diretora. Até já nomeei este verbo para meu adjunto porque não me ocorre nenhum mais válido e eficiente para o cargo em questão.
O rapaz da lancheira que tem nome de santo – quem não tem neste país de católicos ? - queria dar-me beijos e abraços mas mantinha-se quieto, de perna cruzada, esperando um sinal enquanto o meu scanner lhe lia o coração.
E foi então que desejei parar, desligar a máquina e a razão, ficar quieta e calada e deixar-me ir, dobrada as vezes que fossem precisas até ficar do tamanho de uma caixa de fósforos, esconder-me dentro da lancheira no meio dos bolinhos e das pastilhas e ir com ele para todo o lado, levada pela mão, a mão que levava a lancheira.
O jardim da Estrela tem muitos bancos, gansos e patos, tem recantos e escorregas e baloiços, mas há um banco, o quinto à direita do lado de quem vem da basílica que será sempre o banco do rapaz da lancheira. Se voltar a encontrar-me com ele, vou escolher o mesmo lugar e esperar que desta vez ele traga o coração ligado ao corpo e à cabeça com os fios arrumados e sem nós, para que juntos
possamos dar laços com os dedos e a vida.
Ler a cabeça e o coração nem sempre é bom, por isso prefiro tirar os óculos da intuição, fingir que não adivinho nada, que não quero nada, que não sonho com nada, até me sentir livre de tudo, como tanto desejo e mereço.