'
FLASH!
Verão 2025
Compre aqui em Epaper
Margarida Rebelo Pinto
Margarida Rebelo Pinto Pessoas Como Nós

Notícia

O lado de fora da vida

Às vezes precisamos de um choque com a realidade para passar do lado do coração para o lado da razão.
03 de janeiro de 2017 às 14:52
Paris, Ópera de Paris
Paris, Ópera de Paris

"Fui muito feliz em Paris, mas também fui muito infeliz". Era assim que começava a diário da minha tia-avó Ester. Descobri-o quando desmanchei a casa dela, um rés do chão escuro e imenso no Campo Santana, que recebi de herança.

A tia Ester teve um filho que morreu na Guiné, uma morte estúpida – e não são todas as mortes a coisa mais estúpida da vida? – a uma semana do regresso, atacado por uma febre estranha.

A Tia Ester, que já era viúva, demorou muitos anos a recuperar do desgosto. "A tia Ester precisa de companhia", dizia-me a minha mãe. E foi assim que ganhei uma segunda mãe, de quem cuidei com todo o carinho e amor até ao último suspiro.

A tia Ester adorava viajar mas tinha pavor de aviões. Só Jean Bertrand a fazia arriscar a vida, entalada por entre as asas de um pássaro de aço.

Mas o amor é sempre mais forte e consegue fazer com que as pessoas percam o juízo, o medo e outras coisas. O Bertrand era um diplomata com uma carreira apagada que tinha feito comissão em Lisboa, com quem a tia Ester teve um caso secreto e persistente, perante o qual a família e a sociedade lisboeta fechavam os olhos.

Chegaram a levar-me a lanchar a Montes-Claros e a passear ao Jardim Zoológico onde me deliciava a dar voltas em cima dos elefantes indianos e ensaiava as minhas primeiras voltas no ringue de patinagem, no tempo dos patins de quatro rodas.

Jean Bertrand, além de alto, bonito, bem-parecido e elegante, era casado. A mulher era doente, estava internada numa clinica nos arredores de Paris, não tinham filhos.

Alegava que não se podia divorciar da pobre coitada, temendo que a insuficiência pulmonar da legítima piorasse. "O meu maior engano foi acreditar que o amor da minha vida me iria escolher. Era tao ingénua que não sabia que nunca são os homens que escolhem", diz no diário que cheira a bafio, onde dormem bilhetes de metro e bases de copos de cartão do Café de la Paix.

O caso prolongou-se durante vários anos. Imagino que tenha ocupado o coração e a imaginação da minha tia Ester que descobriu depois dos 40 anos o que era o prazer carnal e por conta disso, perdeu várias vezes a cabeça sem nunca perder um avião para se atirar sem pudor nem receio nos braços do seu Chevalier Charmant, como lhe chamava.

Mas Bertrand não era bem quem ela pensava, com as suas mechas loiras e onduladas e o seu porte de ator de cinema. Tudo se desfez quando, num ataque de loucura, a tia Ester decidiu por sua conta e risco visitar Betrand em Paris no dia do seu aniversário.

Não sei que cordelinhos mexeu, mas conseguiu a morada da residência e tocou-lhe à campainha. Abriu-lhe a porta uma empregada com sotaque português que a encaminhou para a sala de visitas. Era um apartamento espaçoso em Saint-Germain-de-Près atafulhado de jarras com flores.

A tia Ester sentou-se numa senhorinha estampada e foi surpreendida por uma mulher alta e esbelta, vestida a rigor com um tailleur Channel que lhe estendeu a mão e lhe disse em francês:

- Sou a Madame Bertrand, o meu marido está ocupado, em que lhe posso ser útil?

Não estava internada, não sofria de nenhum tipo de insuficiência, respirava saúde e uma desconfiança que disfarçava com mestria. A tia Ester inventou que Bertrand talvez lhe pudesse dar o contacto de uma antiga secretária da Embaixada que ela gostaria de voltar a encontrar na sua estadia em Paris.

Escreveu o nome imaginário num papel, agradeceu a visita e saíu. Caminhou durante horas à beira do Sena, sozinha, sem saber o que fazer. Quando regressou a Lisboa já não era a mesma pessoa. "Ele fazia parte da minha vida em Lisboa, mas tinha outra vida em Paris. E escolheu-me para o lado de fora da vida". São estas as últimas linhas do diário. Nunca mais se encontraram.

Às vezes, precisamos de um choque com a realidade para acordar para a vida e passar do lado do coração para o lado da razão.

Leia também
Leia também

você vai gostar de...

Mais notícias de Pessoas Como Nós

A menina Clarinha e eu

A menina Clarinha e eu

Não sei quantas vezes tentei esquecer-te, talvez menos do que tu e mais do que o meu coração aguenta, a única que sinto é que, cada vez que a dou espaço à razão, o meu coração começa a encolher-se como um bolo sem fermento, a vida fica sem açúcar e os dias sem sabor.
Mergulhar no futuro

Mergulhar no futuro

Agora, enquanto a ameaça da pandemia pairar sobre Portugal e o mundo, espero pacientemente por aquele momento mágico em que vou poder voltar a mergulhar no mar. A vida ensinou-me a mergulhar no futuro, mesmo quando o futuro é um lugar vago e incerto.
Com cinco letras apenas

Com cinco letras apenas

É engraçado como as palavras mais belas e mais importantes têm três, quatro ou cinco letras. Mãe, pai, avô, avó, tio, tia, filho, paz, saúde, sonho, amor, fado. Beijo, abraço, toque, sim, não, já, agora, calma, vem, fica.
Claras em Castelo

Claras em Castelo

Estar fechada em casa não me custa, o que me custa é não ver o meu filho e os meus pais, as minhas sobrinhas e os meus irmãos, as minha amigas e amigos. Na verdade, o que me custa ainda mais, é não acreditar que, quando a pandemia passar, as pessoas não vão mudar. Agora acreditam que sim, estão paralisadas pelo medo, mas são apenas boas intenções, porque as pessoas não mudam.

Subscrever Subscreva a newsletter e receba diariamente todas as noticias de forma confortável