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Este livro revolta e não nos deixa respirar. A triste história de Neige Sinno chega a Portugal sob a forma de um relato absolutamente perturbador

Neige Sinno é romancista, autora de novelas, mas o que nos conta em 'Triste Tigre' não é, lamentavelmente, ficção. Quando era uma menina, foi violada repetidas vezes pelo padrasto, guardando, durante anos, o inferno que a sua existência se tornou. Passa-a agora por palavras num relato para o qual é preciso estômago, lenços e empatia...
Por Rute Lourenço | 25 de setembro de 2024 às 18:00
Triste Tigre, de Neige Sinno Foto: Flash

É difícil não colar logo na primeira página. Não porque é agradável, não porque nos leva a sonhar ou a viajar por lugares distantes, mas precisamente porque 'Triste Tigre' nos deixa mal-dispostos assim que passamos os olhos pelas primeiras linhas.

"No caso da vítima é fácil, todos conseguimos colocar-nos no seu lugar (...) O algoz, pelo contrário, é outra coisa. Estar num quarto sozinho com uma criança de sete anos, ter uma ereção perante a ideia do que se vai fazer a essa criança. Verbalizar as palavras que a levarão a aproximar-se, enfiar o membro ereto na boca. É isso, sem dúvida, o que mais nos fascina porque escapa ao nosso entendimento", poder ler-se no arranque do livro.

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O vocabulário e tom tão diretos utilizados podem ser chocantes para alguns, mas Neige Sinno, a autora, não fala de cor, tem propriedade nas palavras. Desde os sete anos que foi violada pelo padrasto. Não uma, nem duas, mas sim repetidas vezes até perder a conta e as violações se fundirem com a própria história da sua infância. 

Neige Sinno Foto: Flash

Durante anos, Neige, que vivia então numa pequena localidade nos alpes franceses, não contou a ninguém: nem à mãe, nem ao pai, com quem estava pontualmente, nem aos professores e muito menos aos irmãos. Guardou tudo para si e foi acumulando cicatrizes emocionais que se julga, por mais anos que viva, incapaz de curar. Conseguem imaginar o que isto é capaz de provocar na formação da personalidade da pessoa, de definir aquilo que ela é?

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Se não conseguem (ou mesmo que consigam) têm de ler o livro - vencedor de vários prémios em França, onde foi originalmente publicado - porque é um relato perturbador, que faz com que sintamos as dores de Neige, na sinceridade tão crua como agora se expõe perante o mundo para que outras vítimas possam ter voz e homens como o seu padrasto se sintam, de alguma forma, ameaçados.

O livro, que chega agora a Portugal, passa por palavras a história desta mulher que em França se tornou num caso de polícia quando, aos 19 anos, decidiu denunciar o padrasto, num julgamento público em que este acabaria por confessar quase tudo aquilo que lhe fez. Se não o tivesse feito perante o juíz, provavelmente a queixa de Neige, como tantas outras, nem teria sido levada a sério, seria mais uma na gaveta, mas neste caso concreto culminou com uma pena de prisão, ainda que para a autora isso não significa que se tenha feito justiça, porque a sua vida já estava irremediavelmente condicionada, condenada.

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Quando finalmente ganhou coragem para denunciar o padrasto, Neige já tinha saído de casa, daquela 'bolha' violenta, que lhe embaciava os pensamentos. Depois disso, estou Literatura, mudou-se para o México na esperança que a distância desenraizasse estas memórias, escreveu novelas, publicou um romance, aperfeiçou-se na arte de passar os sentimentos para palavras até que se dispôs a contar a sua história, talvez na tentativa de melhor compreender tudo aquilo que lhe aconteceu.

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 "Lembro-me de lugares. Eu, que tenho uma péssima memória visual, lembro-me ainda hoje de pormenores desses lugares. Por vezes, volvem-me às narinas certos odores. Permaneci sem dúvida imóvel durante muito tempo, a observar o espaço à minha volta enquanto ele fazia o que tem a fazer." 

A maneira como Neige escreve faz-nos sentir as suas dores (ainda que isso seja efetivamente impossível), faz-nos pensar no privilégio que é nascer na família certa, nas pequenas sortes que não controlamos, bem como nos monstruosos azares que toldam a nossa vida.

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Todo o livro nos tira o fôlego pela crueldade daquilo que Neige viveu quando devia ser simplesmente criança e também por tudo aquilo que terá ainda de viver, pelos fantasmas que a habitarão para sempre, porque a mãe, a família, a sociedade não souberam estar mais atentos aos sinais que eram dados por um homem rude, cheio de si, ameaçador, mas cortez na vida pública, por vezes até um herói...

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 "Se me perguntarem qual é a minha maior virtude, digo que sou corajosa (...) A coragem é a resposta que escolhi dar à agressão. Mas enfim, seja como for, veio daí. A minha maior virtude, aquela que evoco nos momentos de desorientação, vem daquilo que vivi, daquilo que ele me fez. Toda a minha personalidade, foi ele que a fez. O bom e o mau. O genial e o terrível." 

Depois de ler o relato de Neige, é impossível não pararmos para pensar que se batalha tanto para lutar contra preconceitos, mudar mentalidades, mas não deixamos de, por vezes, ter aquela sensação amarga de não se ter avançado assim tanto do ponto de partida.

'Triste Tigre'

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NEIGE SINNO

Editorial Presença 

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