Os 5 trabalhos de António Guterres, reeleito como Secretário-Geral da ONU
O antigo primeiro-ministro português foi reconduzido no cargo de Secretário-Geral na passada sexta-feira por unanimidade e, entre o seu discurso e o manifesto que publicou, levantou o véu sobre quais os desafios mais importantes das Nações Unidas neste seu segundo mandato.
O português António Guterres foi, na passada sexta-feira, renomeado unanimemente pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas como secretário-geral da ONU, naquele que será o seu segundo mandato numa função que ocupa desde 2017, quando sucedeu a Ban Ki-moon.
A cerimónia da recondução, realizada em Nova Iorque, contou com a presença do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e, como é hábito, com um discurso – trilingue, em inglês, castelhano e francês – por parte do próprio António Guterres.
Nele, o antigo primeiro-ministro caracterizou-se como um "orgulhoso português" e assinalou que "o maior desafio, e a nossa maior oportunidade, é a de usar esta crise para alterar o rumo dos acontecimentos em direção a um mundo que aprende a sua lição e promove uma recuperação justa, ecológica e sustentável, apoiada numa cooperação internacional para resolver os problemas mundiais", referindo ainda quais as áreas de intervenção mais prementes para o próximo mandato.
1. A distribuição de vacinas a nível global
Num ano marcado pela pandemia da Covid-19, a distribuição de vacinas é, segundo Guterres, a maior prioridade: "ultimamente, esta transformação tem a ver com solidariedade e igualdade, mas tem de começar agora: as vacinas deveriam estar disponíveis para todos em todo o lado e temos de criar as condições para recuperar de forma sustentável e inclusiva, tanto no mundo desenvolvido como naquele em desenvolvimento, mas ainda há um longo caminho pela frente."
Este é um tema que tem tido no secretário-geral das Nações Unidas um dos mais persistentes interlocutores: já em fevereiro havia dito que "o último dos falhanços morais é a incapacidade de assegurar a equidade na vacinação", quando 130 países não haviam sequer recebido uma dose das vacinas, e, no dia 11 de junho, considerou que as vacinas deveriam ser considerados "bens públicos globais." Angela Merkel já elogiou Guterres pela importância dada pelas Nações Unidas a este assunto: "A pandemia mostrou-nos que a capacidade da ONU de reagir rapidamente a desafios atuais é essencial", declarou a chanceler alemã.
Segundo o site ‘Our World in Data’, a esta altura apenas 0,9% da população dos países com baixos rendimentos receberam pelo menos uma das doses da vacina, enquanto que nas nações de elevado rendimento o valor já atingiu os 40%. Este é, assim, um dos maiores desafios para o português no mais próximo dos futuros, tendo já se afirmado otimista em relação ao programa conjunto entre FMI, Banco Mundial, OMS e OMC para a criação de um programa de 50 mil milhões de dólares que pretende apoiar a distribuição de vacinas aos países em vias de desenvolvimento.
2. A pobreza
Também na desigualdade de rendimentos a Covid-19 acabou por ter um papel negativo e a clivagem criada entre pobres e ricos pode ainda não ter terminado – se a perda de bem-estar, comprovada pelas conclusões de uma publicação do Instituto para o Estudo do Trabalho, é maior nos países mais pobres do que nos mais ricos, a distribuição desigual de vacinas poderá destacar ainda mais esse desequilíbrio, permitindo aos países de rendimentos elevados recuperarem de forma mais célere que os seus congéneres de rendimentos mais baixos.
Inclusive, António Guterres afirmou, no seu discurso: "Milhões de famílias perderam entes queridos, 114 milhões de empregos foram perdidos, mais de 55% da população mundial ficou sem qualquer tipo de proteção social e a pobreza está a aumentar pela primeira vez em vinte anos."
3. As mudanças climáticas e a perda de biodiversidade
"A humanidade está a travar uma guerra com a Natureza. A biodiversidade está a colapsar, os ecossistemas estão a desaparecer, e a poluição do ar e da água está a matar mais de 9 milhões de pessoas anualmente", pode ler-se no manifesto do secretário-geral da ONU para este novo mandato.
De facto, Guterres já havia assinalado, na antecâmara do encontro do G7, os vários erros cometidos pelos países acerca das mudanças climáticas: o maior financiamento providenciado a combustíveis fósseis do que a energia renovável, os subsídios atribuídos a esses mesmos combustíveis, os fundos prometidos a países em desenvolvimento que nunca chegaram e a inabilidade de impedir que se ultrapasse o limite do aumento médio de temperatura estipulado no Acordo de Paris. Cabe agora ao antigo primeiro-ministro encontrar uma forma de reunir esforços para combater uma realidade que parece cada vez mais preocupante.
Também combater a perda de biodiversidade é um dos alvos da ONU: no passado mês de junho, os painéis intergovernamentais da organização responsáveis por estas duas áreas reuniram-se pela primeira vez e listaram um rol de posições que deverão ser tomadas nos anos vindouros, como são exemplos as alterações nos hábitos de consumo individuais e o travar dos subsídios que ainda existem para atividades que são nefastas para a natureza como são os casos da deflorestação, a sobrepesca e a sobrefertilização.
4. A igualdade de género
No discurso da recondução, o antigo alto comissariado da ONU para os refugiados referiu também a sua preocupação em relação ao caminho que ainda falta percorrer no que toca à igualdade de género e aos efeitos negativos da pandemia sobre o rumo que estaria a ser tomado, falando do "sofrimento feminino em redor do mundo", agudizado pela crise sanitária, e pedindo a maior participação de jovens mulheres nos processos de decisão a nível global.
No seu 'mission statement' já supramencionado, intitulado ‘Restoring Trust and Inspiring Hope’ – ou ‘Restaurar a Confiança e Inspirar a Esperança’, em português – Guterres referiu que "a desigualdade de género e a discriminação contra mulheres e raparigas é possivelmente a mais sufocante injustiça. Em todo o lado, as mulheres estão piores que os homens, só por serem mulheres. A pandemia piorou desigualdades profundas e apagou anos de progresso em direção à igualdade de género", explicou o ex-secretário-geral do Partido Socialista, referindo a violência doméstica, o tráfico e exploração sexual e os casamentos de menores como exemplos.
5. O desafio da transformação digital
O desenvolvimento tecnológico está a avançar a enorme velocidade, mas, no lado oposto das vantagens criadas por esta nova realidade – como, por exemplo, o sucesso do teletrabalho na era pandémica – surgiu também uma pletora de novos desafios. Assinalou António Guterres no seu manifesto que "estamos a enfrentar uma divisão digital que reforça os desequilíbrios socioeconómicos: monitorização, controlo, manipulação, comportamento anárquico e criminoso no espaço cibernético e espaços digitais que se mantêm desgovernados", dando ainda o exemplo da desinformação: "já vimos como foi utilizada para contribuir para agendas políticas e comerciais, com um impacto corrosivo, divisivo e polarizante nas sociedades."
Já sobre os objetivos das Nações Unidas neste âmbito para os próximos anos, o português declarou que é imperativo que incluam "um futuro digital aberto, livre e seguro, no que respeita à proteção de dados, à privacidade e a outros standards dos direitos humanos", adindo que "a digitalização e a cooperação digital deverão ser alavancadas de forma efetiva para beneficiar e corrigir as problemáticas que subsistam num plano global."